Entre Maria Schneider e Maya Deren: quem cria as narrativas do mundo?

Atriz e diretora Maya Deren, retrato preto e branco em frente a um vidro

Fotografia: Por Maya Deren (1917–1961) – Foto de Domínio Público, via Wikipedia

A proposta de traçar paralelos entre a trajetória da atriz Maria Schneider e o cinema de Maya Deren me faz questionar: até onde podem ir as consequências de uma violência? O quanto a sociedade ocidental é conivente com as violências – inclusive no meio artístico?

Já explico melhor. Recentemente, tive a oportunidade de acompanhar uma mostra de curtas produzidos pela atriz e cineasta norte-americana Maya Deren, bem como o novo filme “Meu Nome É Maria”, estrelado pela hipnotizante Anamaria Vartolomei (por quem sou apaixonada desde que a vi em “O Acontecimento”, longa baseado no livro de Annie Ernaux que também inspira minhas pesquisas e Ciclos de Estudos).

Desde então, minha mente tem feito circuitos entre a realidade e as experiências vivenciadas. Durante muito tempo, eu, Rafaela, acreditei ingenuamente que o Universo das Artes poderia ser uma “bolha de proteção”, pois pessoas cultas, elegantes e de esquerda não seriam machistas. 

hehehehe.

Esquecia-me de como, na verdade, sendo o machismo algo estrutural, ele permeia tudo, todas as relações, todos os meios. Na verdade, às vezes, o universo da Cultura e das Artes o revela de forma ainda mais abrupta, justamente por ser o lugar onde se esperaria um olhar mais subversivo, divergente, evoluído.

Maria Schneider e os impactos psíquicos da violência

Hoje, #MeToo e outros movimentos já denunciaram abusos na indústria do Audiovisual, confirmando: mesmo nos espaços criativos, culturais, há desrespeitos (micro e macroviolências). O filme sobre a vida da atriz Maria Schneider é uma denúncia em si mesmo.

Nele, o público é apresentado à forma como a atriz foi levada a gravar uma cena de estupro em frente a uma equipe de câmeras e técnicos, sem ser previamente avisada sobre como se desenrolaria a filmagem e sem ensaio prévio. O restante do enredo é desenvolvido em torno das consequências provocadas por essa vivência, incluindo o abuso de substâncias.

O que me leva a outro exemplo prático e vivido na pele, na mostra de curtas de Maya Deren – uma mulher que escreveu e atuou em vários de seus roteiros -, de quem eu nunca tinha ouvido falar (me pergunto o porquê), ocorrida de forma gratuita pelo CCSP. Adivinha o que aconteceu durante a exibição dos trabalhos dela?

Relato aqui: homens saíam da sessão e bocejavam (propositalmente, em minha percepção), em tom extremamente alto. Como quem diz “que coisa mais chata esses filmes de mulher”. Tentei não dar bola, mas aquilo me incomodou. Sobretudo, por se tratar de um trabalho no qual uma mulher, multi-artista, empenhava toda a sua subjetividade.

Qual é o destino das mulheres que criam e (re)criam narrativas?

Maya Deren suicidou-se, infelizmente. Maria, pelo que o filme dá a entender, supera o vício em heroína. No entanto, não sem antes sofrer muito. Qual é o destino das mulheres que ousam criar suas próprias narrativas trabalhando no campo das Artes (ou, ao menos, peitar as narrativas que lhe são impostas?). É uma pergunta que ficou comigo.

Discutir a Cultura e a forma como ela se faz é importante. Desmontar seus estereótipos também. São eles, afinal, que moldam nosso imaginário e o pensamento crítico de milhares de pessoas e espectadores.

Gostou do texto?

Te convido a se inscrever no Ciclo de Estudos “Conversas com Annie Ernaux” – uma série de quatro aulas para debatermos a obra da escritora francesa em eixos-temáticos da contemporaneidade. Início das aulas em maio!

“Vitória”, “Monster” e “Adolescência”: o que a juventude quer nos dizer?

Foto de divulgação do filme "Vitória", cena entre atuantes no corredor; Dona Vitória, com uma sacola verde na mão, conversa com o jovem Marcinho;

Fotografia: Suzanna Tierie/Divulgação, via Jornal Extra

Será que os filmes “Monster”, “Vitória” e a série “Adolescência” têm algo em comum, considerando a questão: o que a juventude quer nos dizer? Vou tentar explicar (a você e a mim mesma).

Talvez um dos papéis mais relevantes da Arte na sociedade seja este: colocar determinados temas em evidência. Assim como aos jornalistas, a partir de uma série de critérios, cabe decidir o que é ou não “notícia”, aos artistas cabe escolher sobre o que falar.

Por exemplo: ao escrever um texto de Dramaturgia, necessito entender SOBRE O QUE falar, PARA QUEM quero falar e a FORMA como quero falar. É neste sentido que procuro agora estabelecer uma relação entre três produções audiovisuais que acompanhei recentemente. O ângulo que escolho é justamente a presença de jovens nelas.

1. Adolescência

Na série “Adolescência”, da Netflix, a proposta da produção é bastante óbvia e já escancarada no título: precisamos falar sobre o universo dos adolescentes na atualidade. O mundo da internet afeta as percepções e as relações das e dos jovens sobre a realidade?

Indiscutivelmente, sim. Os pais de outras gerações compreendem de forma ampla este impacto? Indiscutivelmente, não. Isso pode levar a consequências trágicas.

Aqui no Brasil, reflexo do que acabo de escrever é a proibição por lei do uso de celulares nas escolas da Rede Pública e Privada. Enquanto artista-docente em uma delas, por intermédio do Projeto O Nascer da Poesia, concordo que a proibição é necessária.

No entanto, proibir é também uma forma radical de admitir: não fomos capazes, enquanto sociedade, de lidar com a questão de forma mais organizada. O que, a meu ver, simboliza também uma fragilidade de nosso sistema.

2. Monster

Já “Monster” é uma produção majoritariamente focada nas implicações do ambiente escolar a partir de diferentes perspectivas: a de uma mãe solo, um educador, uma diretora – e, claro, de alunos (dois, em específico).

Uma mensagem que ficou comigo a partir do filme é esta: precisamos acolher os afetos que brotam entre jovens – sem visões maliciosas de adultos. Este é um caminho possível para pensar possibilidades de futuro menos catastróficas.

3. Vitória

Por fim, cito “Vitória”, filme nacional que estreou recentemente com a gigante Fernanda Montenegro. Nele, a crítica central é outra: a problemática dos territórios no Brasil, algo que persiste desde que os primeiros europeus pisaram aqui e que ganha novos e assustadores contornos com a evolução neoliberal.

Aqui, temos como enfoque a milícia. A ditadura que nunca acabou em zonas periféricas tomadas pelo tráfico de drogas. Aquilo que remete às feridas mais profundas da nação (#MariellePresente – sempre).

Sim, entre tudo o que menciono e me parece caber neste texto, acho que talvez a ferida mais sangreta, latente e urgente de estancarmos no Brasil é esta: as vidas jovens perdidas para a droga, o vício, o caminho contrário à Educação e Cultura. Até quando?

Jovens de 13 anos [muitas vezes, negros], viciados em cocaína são seres humanos que denunciam ainda haver algo de muito equivocado nisto a que chamamos de civilização. É preciso repensar nossos modelos.

Naturalmente, neste texto procurei refletir sobre três criações audiovisuais muito distintas em vários aspectos. “Adolescência” é uma série que se passa na Inglaterra, “Monster” tem o Japão como contexto e “Vitória”, conforme citado, é uma produção nacional. 

Todas elas, contudo, nos proporcionam um importante alerta: precisamos dialogar sobre – e com – adolescentes. Parar de estigmatizá-los de forma simplista como “difíceis”. Expressar nosso amor a elas e a eles. As e os adolescentes de hoje (que são também a esperança de algum futuro neste planeta sujeito à deterioração climática acelerada).

E você, já acompanhou a série ou os filmes citados? Quais foram as suas percepções? Fique à vontade para expressar sua opinião nos comentários.

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Com carinho,

Rafa

6 leituras de 2024: dicas para você se inspirar

Fotografia: Kimberly Farmer, via Unsplash

Mais um fim de ano se aproxima e me peguei pensando: quais foram as leituras de 2024 que me fizeram evoluir e posso compartilhar como dicas para você se inspirar? A partir da questão, cresceu o desejo de compartilhar alguns livros que tocaram meu coração neste período. 

Claro que é complexo ser seletiva, mas a proposta aqui é apresentar obras que vão desde a literatura infantil, passando pela poesia e romance, caminhando também ao lado do erotismo.

Agora, sem mais delongas, espie algumas das minhas 6 leituras de 2024 que recomendo a você: 

1. Meu Crespo é de Rainha, de bell hooks

Ao ler bell hooks, descobri que cabelo não é só estética. Diz respeito à identidade e à autopercepção. Sim: a forma como nos relacionamos com ele também é política. E, no que diz respeito às crianças negras, torna-se ainda mais importante enaltecer a beleza dos fios crespos e encaracolados em suas mais distintas formas. 

É isto que, de uma forma simples e poética, bell hooks nos oferece neste livro colorido, fofo e cheio de personalidade, ilustrado por chris raschka. É recomendado para adultos e crianças a partir dos 3 anos (vale muito uma leitura em família!).

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2. Amora, de Natalia Borges Polesso

Amores, amoras, encontros, desencontros, desejos correspondidos ou não. Este livro de Natalia Borges Polesso traz contos que convidam às lágrimas: sejam de tristeza e/ou de alegria. Meu pai, Etílio Tuiscon Kich, costuma dizer que “todas as histórias são histórias de amor”. Gosto desta frase e esta obra, para mim, ilustra um pouco tal percepção.

Os contos da escritora trazem um toque de afago e fuga dos clichês ao passear por histórias que poderiam muito bem ser a de alguém conhecido seu – se não as suas próprias. Não por acaso, a obra já venceu o Prêmio Jabuti e foi traduzida e publicada em vários países. 

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3. Eu Versos Eu, de Paula Taitelbaum

Sou um pouco suspeita ao falar da Paula, por ser uma poeta, editora e escritora que tanto admiro e, inclusive, escreveu um comentário na contracapa do meu livro de poesias mais recentemente lançado, o “Fragmentos: poemas de pandemia”. Mas bem…que posso dizer? Poesia para mim é, entre muitas coisas, sinônimo de brincadeira com palavras.

E é isto que Paula faz neste livro que foi o seu de estreia, apresentando com coragem nuances da alma de uma mulher que sente, pensa, goza e quer muito da vida. Me inspira.

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4. Paula, de Isabel Allende

Não sou mãe (só de pet! hehe), então é complexo imaginar a dor de ver uma filha muito doente. No entanto, esta foi uma situação real da vida da escritora chilena Isabel Allende – e, como é típico das escritoras cujo talento transcende as palavras de seu livro – ela consegue transmitir tal sensação devastadora no livro “Paula”, um de seus maiores clássicos.

A obra não foi planejada, foi mesmo o resultado de uma sugestão da editora de Isabel para que ela atravessasse o difícil período em que esteve com a filha entubada no hospital lidando com a dor a partir das palavras. Ao dialogar e retratar fatos sobre sua infância e sua vida a ela, Allende acaba por rememorar também fatos importantes acerca da história do Chile, como a ditadura de Pinochet, no golpe militar de 1973.

Aqui, há um exemplo nítido do que Conceição Evaristo chama de escrevivência. Um livro para chorar, aprender, crescer e lembrar de valorizar o divino presente que é a saúde. Não por acaso ele consagrou Isabel como uma das maiores escritoras latino-americanas. 

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5. O Relatório Hite: Um Profundo Estudo sobre a Sexualidade Feminina, de Shere Hite

Mulher: você goza? Como goza? Quanto goza? Como gosta? Shere Hite foi uma mulher visionária, a partir de um questionário, ao entrevistar dezenas de mulheres acerca de sua sexualidade – algo que, por vieses religiosos e políticos, ainda hoje para algumas pessoas é tabu.

Neste livro, apresenta perguntas e respostas sinceras sobre temas que permeiam o erotismo e a vida sexual feminina, trazendo à tona temas como orgasmo, masturbação e relacionamentos homo e heterossexuais. 

Sem delongas, recomendo a leitura para todas as irmãs que procuram assumir o prazer em suas vidas com menos culpa e vergonha, mais amor-próprio e cuidado consigo mesmas. 

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6. Quintais, de Geruza Zelnys

Traumas, abusos, dor, violência. Beleza, êxtase, embalo, fruto. A vida tem disto tudo. É o que nos lembra a escritora Geruza Zelnys nos poemas do livro “Quintais”, obra que fortemente recomendo para quem tem coragem de deixar a poesia entrar visceralmente no corpo.

Como diz a também poeta Matilde Campilho, “a poesia não salva o mundo, mas salva o minuto”. O que Geruza, minha companheira de editora Patuá*, oferece aqui é um respiro, um escape de angústia, uma possibilidade de seguir pelas palavras – como é próprio da poesia. 

Compre o livro aqui neste link.

*Sim, eu também publiquei por esta editora um livro de poemas, chamado “A Parte de Nós Que Canta”. Você pode comprar aqui ou me enviar um e-mail no endereço rafaela.kich@gmail.com para eu te encaminhar uma cópia autografada. Envio para todo Brasil e exterior. 

E você, já leu algum destes livros? Qual foi o que mais gostou? Qual foi a sua leitura mais marcante de 2024? Fique à vontade para me contar aqui nos comentários.

Me despeço com votos de que 2025 nos brinde com amor, saúde, paz, prosperidade e, claro, muitas leituras estimulantes para expandir cada vez mais nossa percepção de mundo. Continue acompanhando os textos do blog nesta nova etapa.

Vamos ter muitas e muitas novidades. 🙂

*ps: os livros contêm meu link de Afiliada da Amazon. Ao comprar através deles, eu recebo uma comissão que ajuda a manter este blog, mas você não paga nada a mais por isso. Muito obrigada!

bell hooks e o amor como a maior prática política

Escritora bell hooks em palestra no ano de 2009.

Fotografia por Cmongirl – Domínio público

Sinto-me no dever de escrever um pouco sobre a última obra em que mergulhei assinada por bell hooks: “A Busca das Mulheres Pelo Amor” (Editora Elefante. 2024). Afinal, se pensar sobre o amor pode até soar piegas, talvez em uma nova era Trumpiana este seja o momento de reconsiderar a questão. 

Desde o início, me fisgou o quanto a explanação de hooks neste livro é próxima da realidade, da Cultura. Exemplifico: no decorrer da leitura, encontrava respostas sobre sentimentos associados às relações que estava vivendo naquele exato momento. (obrigada, bell, você me deu a mão!).

Ou seja: a percepção de hooks, a meu ver, parte de uma perspectiva profundamente espiritual. Mas sem jamais perder a percepção do Real. Em outros termos, a autora nos convida a pensarmos sobre o amor sem jamais deslocá-lo dos desafios impostos pelo racismo, a heteronormatividade e o patriarcado.

Sobretudo, talvez, algumas reflexões que tocaram uma parte muito íntima e verdadeira de mim foram aquelas que salientaram o amor como uma prática política capaz de dissolver as estruturas bélicas, opressivas e violentas da Cultura Ocidental e da vertente neoliberal. 

Afinal, amar não tem a ver com dinheiro. Talvez, em parte pelo aspecto da sobrevivência, pela perspectiva do zelo, até sim. Mas o excesso não garante amor. Amor de verdade demanda muito mais. Apoio. Incentivo. Afeto. 

Amemos, portanto! Esta força, embora não aparente, pode ser mais forte que as armas. É dela que, diante dos desafios – climáticos, sobretudo – precisamos agora mais do que nunca, novamente. 

  • Um fato divertido:

Instigada, parei ao abrir o livro no nome da tradutora: Julia Dantas. Que alegria! Uma autora conterrânea e extremamente talentosa ter tornado possível o acesso às palavras da bell hooks. 🙂 e, graças à 70ª Feira do Livro de Porto Alegre, ainda foi possível receber este autógrafo/presente. Obrigada, Julia, pela acolhida carinhosa. Que nossos caminhos possam se cruzar de novo em breve.

Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo: dor transmutada em poesia (Resenha – Leituras Obrigatórias UFRGS 2024)

Em “Ponciá Vicêncio”, livro que integra a lista de leituras obrigatórias da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em 2024, Conceição Evaristo demonstra que, se é das sensibilidades simples que nascem as mais belas literaturas, não é por acaso seu lugar consagrado entre as maiores autoras deste país.

Nele, conhecemos a história de uma ex-escrava e seus encontros e desencontros consigo mesma e sua família. A obra escancara a dor – nunca redimida pela branquitude – do período da escravidão brasileira, mas com frases de pura poesia que fazem da narrativa de uma história brutal também um exercício de leitura delicada. Há poética apesar da brutalidade, afinal. Também, que se há de fazer diante do absurdo já ocorrido?

Ponciá é herdeira da escravidão e todas as suas violências físicas e psíquicas. Violências que internalizam marcas próprias, somadas àquelas da pobreza, perpetuando-as. Passeando pelo campo da Psicanálise – intencionalmente ou não – Conceição nos permite aqui contemplar em uma personagem os efeitos da profundidade de um trauma.

Vemos, em Ponciá, os efeitos traumáticos de vivências a partir de contextos históricos/culturais (escravidão, submissão) e pessoais (violência doméstica), sempre correlacionados. Nossa personagem, a partir destas agressões conjuntas, “se apaga de si mesma”, contempla vazios, permanece horas em silêncio.

Seu irmão, afastado do campo, na cidade sonha em ser soldado – fardado, forjando, assim, uma identidade que lhe garanta respeito. É ao tecer esta narrativa de tramas que Evaristo nos brinda com “frases-abraço”, como: 

“Com o zelo da arte (…) buscava significar as ausências e mutilações, que também conformam um corpo”;

“A vida era um tempo misturado do antes-agora-depois-e-do-depois-ainda”;

“O amanhã de Ponciá era feito de esquecimento”;

Em “Ponciá Vicêncio”, Conceição Evaristo demonstra que a vida é, de fato, como cantou Vinicius de Moraes, a arte do encontro. Muito embora haja tanto desencontro pela vida.

E tu? Já leste este livro? O que achou da obra? Aproveita para me contar aqui nos comentários. 🙂

A Escrita como Faca: Pulsão, Memória, Erotismo em Annie Ernaux

Foto: Escritora Annie Ernaux - de camiseta azul e anel com pedra azul, fala com microfone e fones de ouvido, em painel de FLIP 2022;

Foto: YouTube/Reprodução

A Escrita como Faca e Outros Textos” (Editora Fósforo, 2023) é uma obra que conduz a leitora e o leitor a reflexões sobre memória, afeto, e, sobretudo, os “porquês” da escrita. 

Em um formato bastante experimental – que mistura trechos de cartas, diários e entrevistas da vencedora do Prêmio Nobel de Literatura, Annie Ernaux, – o livro convoca a pensar a escrita e a leitura enquanto processos e, indissociavelmente, como atos políticos (ainda que apartidários).

Annie Ernaux faz, aqui, um relato sincero acerca da escrita quase como “obsessão”. Como ela se dá, a partir de uma necessidade muito íntima e profunda. Que espaços encontra em seu dia a dia. 

Indo além, generosa como é, Ernaux revela também um pouco dos impulsos que a levam a redigir suas palavras – fios de memória que se costuram, fotos que despertam sentimentos pedindo por elaboração. Uma necessidade, agora parafraseando-a, de dar um sentido ao tempo, às coisas.

Pela escrita, a francesa parece querer fazer com que os acontecimentos não tenham um fim em si mesmos, mas que adquiram significado. Ernaux parece compreender, enfim, que fazer literatura, por meio da sintaxe, do uso das palavras e da escolha dos fatos a retratar é, em si, ato de libertação. E/ou de “vingar sua raça”, para citar termos que ela mesma coloca.

Seja como faca ou gozo/pulsão, intencionalmente ou simplesmente a partir de uma honestidade comovente, o fato é que na escrita de Annie nada é gratuito. Seu tecer das palavras é história, antropologia, psicologia, memória. Arte, em si. Política, portanto.

Recomendo a leitura. 

O Avesso da Pele: Coletivo Ocutá encena afetos, ritmos, dor e literatura em construção coletiva do mais alto nível

Coletivo Ocutá, composto por Alexandre Ammano, Bruno Rocha, Marcos Oli e Vitor Britto.  Em Divulgação da Peça O Avesso da Pele. Foto por Helbert Rodrigues

Fotografia: Helbert Rodrigues/Divulgação

Hoje, dia 31 de março de 2024, datam-se 60 anos do Golpe Militar no Brasil – momento que julgo propício para compartilhar aqui mais algumas impressões sobre o espetáculo cênico “O Avesso da Pele”. Este, inspirado pelo livro de Jeferson Tenório (Companhia das Letras, 2020).

Encenada pelo Coletivo Ocutá, a peça apresenta direção de Beatriz Barros e atuações de Alexandre Ammano, Bruno Rocha, Marcos Oli e Vitor Britto. 

A narrativa se desdobra em uma Porto Alegre dos anos 80 e revela a história de Henrique e Pedro (pai e filho, respectivamente). Aspecto interessante é o fato de que não há papel fixo para os atores, eles se revezam na interpretação das personagens – inclusive Marta, esposa de Henrique e mãe de Pedro.

Em um país estruturalmente racista, com cicatrizes de um período ditatorial que parece pulsantemente vivo ainda nos dias de hoje – algo que fica evidente diante da recente tentativa de censura da obra literária que a inspirou -, “O Avesso da Pele” é uma peça tão dolorida, quanto necessária de se ver.

Poesia em corpo e coreografias que pulsam experiências de (re)existências

O espetáculo apresenta nuances poéticas expressas nos ritmos que costuram as histórias de múltiplas vivências negras e perpassa a pulsão destes corpos que, em meio à opressão cultural, policial, estrutural, como um todo, ainda buscam formas de viver. 

Esta manifestação está, por exemplo, nas coreografias de funk, expressão musical nascida da vivência periférica e que hoje é um ritmo conhecido mundialmente – pouco apreciado apenas nos círculos extremamente conservadores. Isto é teatro essencialmente corpóreo, com entrega total. Lindo de se ver e viver.

A poética se encontra, ainda, na própria beleza da história de um Professor que, no cenário mais desolador – diante de um sistema estudantil precário e opressor – consegue o impossível: cativar, captar a atenção dos alunos, ao contar uma história de forma intrigante e performática.

Assim sendo, gentilmente o Coletivo Ocutá ainda nos brinda enquanto plateia quase com um espetáculo dentro do outro, mostrando a emblemática história de “Crime e Castigo”, de Dostoiévski. Não é pouca coisa.

Válido um destaque especial, aqui, para a composição cênica. Os livros espalhados pelo chão me parecem uma provocativa do paradoxo de uma luta extenuante – em favor da literatura – quando nada mais parece fazer sentido. A vontade de desistir e jogar para o alto.

Ao mesmo tempo, o entendimento de que livros salvam. Especialmente porque são portas de outros universos quando a vivência do real é absurda e completamente insuportável.

De modo mais estritamente analítico, sob minha perspectiva de uma mulher branca – e que não aprecia muitos rótulos e, no entanto, para fins de se “situar” talvez hoje se identificaria como bissexual -,  penso que a peça contempla a representação da dor da mulher negra, por meio da personagem Marta.

Sim. Isto é fato incontestável.

Entretanto, por mais que esta seja interpretada pelo coletivo de homens negros (algo que também se mostra uma excelente provocação), ainda assim sinto falta de uma atriz negra neste papel. Não haver uma presença de mulher ali me incomoda. 

Esta ausência, penso, me desacomoda justamente porque ela mesma no palco é um sinônimo da invisibilidade da negritude feminina nesta sociedade ainda tão racista, quanto patriarcal. 

Entendo que a peça fala da dor causada por uma sociedade machista para todes nós – uma vez que os estereótipos colocados ao homem negro também são extremamente pesados. Mas não sei se posso ir mais além deste ponto, considerando meu lugar de fala.

“Não atender a estereótipos também é resistir”

Na perspectiva de Cíntia Bitencourt, mulher negra, bissexual e não-monogâmica, estagiária de Inclusão, a peça faz refletir sobre como a construção da autoestima é, em verdade, coletiva. 

“É algo que, na minha vivência, eu nunca tinha pensado dessa forma, justamente porque fui me construindo e lutando para me amar de forma muito individual e solitária. O que é um reflexo da nossa sociedade, do neoliberalismo e até mesmo do capacitismo”, pontua.

“Então, ter me enxergado tanto em tantas cenas me deixou do avesso, me lembrou e me fez sentir humana de novo. Já faz algum tempo que tenho me sentido incomodada com as expectativas das pessoas em relação ao que deve ser uma mulher preta no país que a gente vive, como deve se portar, do que deve gostar. como se existisse de fato uma régua do que é mais preto e o que não é (e não estou falando de colorismo)”, acrescenta.

Para Cíntia, não atender a estereótipos também é resistir. “Não quero me sentir desconfortável para caber em espaços que diminuam, que me façam pensar que estou errada em, por exemplo, não dançar pagode! Porque isso não me torna menos negra”, frisa ela. 

“Na peça, me vi muito no personagem do Henrique, mas também me vi muito no Pedro e na Marta. Acho que cada um conta um pouquinho sobre mim, sobre coisas que passei ao longo da vida pra chegar até aqui, para estar viva. Me vejo educadora no futuro, então me marcou muito ter essa referência do professor tão marcante, de tanta luta e resistência”, destaca.

“A gente se acostuma com a violência e se esquece da vida. Se esquece que antes do tiro, antes de ser alvo, antes de ter a vida tirada por uma sociedade racista, houve uma vida imensa”, recorda. Conclui em uma análise poética que a peça “é uma aula ‘daquelas’, de se dar com a alma uma coragem que bala nenhuma atravessa, pois ancestralizar também é viver. Viver em quem fica”.

Arte possibilita justamente aquilo que faz a humanidade avançar: o debate de ideias, a expansão da consciência individual e coletiva, o senso crítico

De minha parte, Rafaela, concluo afirmando que fui acompanhar “O Avesso da Pele” cheia de perguntas, mas descobri que poderia ser mais sábio estar lá para escutar. O som. A voz. O texto. O dizer. As gírias destas pessoas potências.

É lindo, sobretudo, relembrar esta possibilidade que a arte oferece de, literalmente, nos darmos as mãos, como acontece em certo momento do espetáculo. Também de sentir impacto – recordo não ter acordado tão bem no dia seguinte à apresentação.

Talvez justamente por ver o quanto ainda temos a avançar. E relembrar a urgência de fazê-lo. Porque arte tem disto também: remexe as entranhas, toca nas feridas. Mas possibilita, a partir daí, que nos tornemos seres humanos melhores.

Principalmente por, independentemente das opiniões pessoais, viabilizar justamente aquilo que faz a humanidade avançar e, por consequência, ser o grande alvo da ditadura que censura: o debate de ideias, a expansão da consciência individual e coletiva. A construção daquilo que é capaz de tirar o oprimido de sua posição: o senso crítico. 

Esta é a beleza estupenda de tudo. 

Obrigada, Coletivo Ocutá, Tenório, plateia e todes que estiveram lá por esta experiência.

E você, já viu “O Avesso da Pele”? Caso tenha acompanhado, me conta aqui nos comentários as tuas percepções! 

(ps: e se você não viu, fique ligado na agenda do grupo na página do Insta: @oavessodapele – eles vão rodar o Brasil com o espetáculo, quem sabe cheguem aí na tua cidade também?)

RESENHA: Livro Em Busca de Mim, de Viola Davis é honestamente acolhedor

Ao me propor a escrever sobre o livro “Em Busca de Mim”, autobiografia da produtora e atriz Viola Davis – vencedora do Oscar , a primeira palavra que ressoou internamente foi honestidade. Sim. 

Talvez seja esta a parte mais bonita de ler sobre sua intensa e marcante trajetória de vida: sentir proximidade com alguém que está disposta a expor vulnerabilidades. Também a partilhar memórias de uma forma nua e crua, mostrando verdades dos bastidores de sua história pessoal e da indústria.

Viola, cuja infância foi marcada por profundos traumas, hoje dança com sua vergonha.

Saber dos abalos que a atravessaram – incluindo marcas da pobreza, alcoolismo e abuso sexual – e ver como, ao invés de deixar-se aniquilar por eles, transformou-os em combustível para a construção de suas personagens densas, complexas, emocionalmente profundas é inspirador.

Expor sua própria história, por si só, não poderia deixar de ser um manifesto feminista e antirracista – ainda que o tom de suas palavras não denote isto como um propósito pré-definido para a escrita do livro.

Ao rememorar sua trajetória até o momento da publicação da obra (em 2022, no Brasil pela @editorabestseller), o que Viola parece fazer é assumir os méritos de seu sucesso, mas explicitando também que sua trajetória é um ponto fora da curva.

Viola sabe, sem que isso a faça melhor ou pior que ninguém – como ela própria parece perceber – que o destino já previamente traçado para a imensa maioria das pessoas de sua cor é a violência, a pobreza e o desamparo. Por consequência, uma vida muitas vezes associada ao abuso psíquico e químico. 

A atriz assume suas vitórias e seu ímpeto de superar as piores condições imagináveis sem, no entanto, deixar de reconhecer que a sorte também manifestou um papel relevante.

Em outras palavras: sem transformar sua narrativa de superação em um manifesto em favor da meritocracia. Admirável.

Em resumo, Viola nos oferece aqui uma história de amor, resiliência, fé e beleza. 

Particularmente, fico aqui ansiando para que ela dê uma de Ritinha Lee e lance muitas outras biografias. Fico na expectativa de ler.

E você? Chegou a ler o livro? Qual foi a percepção que mais te marcou? Aproveite para compartilhar comigo aqui nos comentários.

Um abraço e até a próxima resenha,

Rafaela  

RESENHA: Livro – “A Vida Mentirosa dos Adultos”

O impacto da palavra de um pai. A passagem – inevitavelmente, de algum modo -, traumática da infância para a adolescência.

A vergonha. O medo. A curiosidade. A descoberta da sexualidade. Todos estes elementos constituintes da experiência de uma jovem são costurados no romance “A Vida Mentirosa dos Adultos”, assinado pela escritora Elena Ferrante.

A indicação do livro por parte da atriz Natalie Portman foi o que, de antemão, me inspirou a mergulhar no texto da autora. Esta que, de fato, a meu ver, possui a capacidade brilhante de adentrar na psique humana.

Ferrante cria um enredo intrigante, com reviravoltas marcantes e seu grande mérito é a empatia capaz de gerar pelas personagens, humanizando-as.

O texto tem um tom psicanalítico, permitindo um mergulho no mundo interno de Gianni – a protagonista – a partir de uma frase escutada sem querer pelos lábios do pai: a de que ela estaria ficando “igual à Tia Vittoria”.

Tia, esta, que pelas narrativas parentais era sempre mencionada como uma mulher na qual “feiura e maldade coincidiam perfeitamente”.

O impacto da frase parece ser fator norteador da narrativa desde o princípio até a última página do livro. O que, naturalmente, evidencia o peso da palavra saída do genitor do sexo masculino para Gianni.

Ela permeia tanto a imagem que a menina faz de si própria, quanto suas decisões – sejam elas de cunho sadio, ou autopunitivas – em seu desabrochar. O impacto da sentença culmina na necessidade urgente da personagem de descobrir a pessoa por trás deste “rosto misterioso” que agora também a molda.

Assim, ela passa a explorar tanto os cantos inexplorados da cidade onde mora – Nápoles -, quanto os segredos que a família guarda.

Em uma jornada instigante reveladora de traições, insensibilidades e a descoberta de um universo adulto que retira os pais do pedestal onde geralmente são colocados pela criança, o que Ferrante nos oferece, sobretudo é a possibilidade de um olhar muito íntimo.

Olhar, este, que deixa algumas perguntas-legado importantes:

Será que, enquanto adultos, nós medimos suficientemente bem as palavras que usamos para falar com crianças e jovens, considerando o impacto que têm em suas vidas? (Em certo momento, a personagem chega a pensar diante do elogio de outro homem por sua beleza: “Cuidado com o que você diz. Meu rosto já mudou por causa do meu pai e me tornei feia. Não brinque de mudá-lo você também, tornando-o bonito. Estou cansada de ser exposta às palavras dos outros”).

Assim, outra questão:

Como a vida de jovens mulheres é atravessada pela presença, a sentença, o poder e a sexualidade masculina?

Qual é o impacto de todos estes elementos em sua própria percepção do desejo, do prazer e da experiência sexual, em si?

Para toda menina que já se tornou, ou segue em sua busca de tornar-se – como diria Beauvoir – mulher, penso que esta leitura será como um abraço compreensivo.

E você? Já leu “A Vida Mentirosa dos Adultos”? Se tiver mais contribuições sobre a obra, compartilhe aqui que adorarei saber. 💛

“Meu Negócio é Cantar”, a frase que me marcou em Gal

Fotografia da Cantora Gal Costa, na década de 1970, com sorriso aberto, batom avermelhado, cabelos longos, escuros e ondulados. Foto de Domínio Público.

Foi lindo, impactante ver a frase saindo dos lábios de Sophie Charlotte, interpretando Gal Costa, usando sua voz. Isto na mais recente adaptação cinematográfica – que chegou às telonas agora em 12 de outubro de 2023 – sobre a vida da cantora, com direção compartilhada entre Dandara Ferreira e Lô Politi.

Voz é poder político. Cantar é um ato político. Não necessariamente partidário. Mas é política.

Aliás, tomei nota de algumas reflexões pontuais e essenciais que o filme me trouxe:

✔️ O que cantamos e escrevemos, enquanto artistas e mulheres, é político. Escolher sobre o que falar. É política.

✔️ O que vestimos e como nos vestimos. É política.

✔️ Sair de casa. É política.

✔️ O que assumimos de prazer para nós mesmas. É política.

✔️ O que fazemos em nossas relações é político. Afetar-se é política.

✔️ O que se compra. O que se come. O que se bebe. É política.

✔️ O quanto/com que se trabalha e como se trabalha. É política.

✔️ Como usamos o cabelo. É política.

✔️ Como nos locomovemos. Avião, carro, metrô, trem, ônibus, barco? É política.

✔️ Não silenciar diante de abusos. E buscar aprender mais sobre nós mesmas e mesmos para evitar padrões abusivos. É política.

Talvez o ponto central aqui seja:

💭 O quanto disto tudo fazemos de forma consciente e o quanto é INconsciente? Como trazer o inconsciente à dimensão consciente?

Jamais ousaria dizer que tenho todas as respostas. 📖 Mas sinto, depois de ver Gal, um sopro de certeza de que a música auxilia no processo. Ela toca, vai em algo do ser humano de dimensão muito profunda.

Livros, música, estudo…apontam caminhos à sanidade, civilidade, humanidade.

E tu? Concordas comigo? Fique à vontade para me contar nos comentários – ou trazer outros questionamentos/levantamentos.

📷: Foto – Cantora Gal Costa, imagem de domínio público.
✔️ #pratodosverem: Fotografia da Cantora Gal Costa, na década de 1970, com sorriso aberto, batom avermelhado, cabelos longos, escuros e ondulados. Foto de Domínio Público.