O Avesso da Pele: Coletivo Ocutá encena afetos, ritmos, dor e literatura em construção coletiva do mais alto nível

Coletivo Ocutá, composto por Alexandre Ammano, Bruno Rocha, Marcos Oli e Vitor Britto.  Em Divulgação da Peça O Avesso da Pele. Foto por Helbert Rodrigues

Fotografia: Helbert Rodrigues/Divulgação

Hoje, dia 31 de março de 2024, datam-se 60 anos do Golpe Militar no Brasil – momento que julgo propício para compartilhar aqui mais algumas impressões sobre o espetáculo cênico “O Avesso da Pele”. Este, inspirado pelo livro de Jeferson Tenório (Companhia das Letras, 2020).

Encenada pelo Coletivo Ocutá, a peça apresenta direção de Beatriz Barros e atuações de Alexandre Ammano, Bruno Rocha, Marcos Oli e Vitor Britto. 

A narrativa se desdobra em uma Porto Alegre dos anos 80 e revela a história de Henrique e Pedro (pai e filho, respectivamente). Aspecto interessante é o fato de que não há papel fixo para os atores, eles se revezam na interpretação das personagens – inclusive Marta, esposa de Henrique e mãe de Pedro.

Em um país estruturalmente racista, com cicatrizes de um período ditatorial que parece pulsantemente vivo ainda nos dias de hoje – algo que fica evidente diante da recente tentativa de censura da obra literária que a inspirou -, “O Avesso da Pele” é uma peça tão dolorida, quanto necessária de se ver.

Poesia em corpo e coreografias que pulsam experiências de (re)existências

O espetáculo apresenta nuances poéticas expressas nos ritmos que costuram as histórias de múltiplas vivências negras e perpassa a pulsão destes corpos que, em meio à opressão cultural, policial, estrutural, como um todo, ainda buscam formas de viver. 

Esta manifestação está, por exemplo, nas coreografias de funk, expressão musical nascida da vivência periférica e que hoje é um ritmo conhecido mundialmente – pouco apreciado apenas nos círculos extremamente conservadores. Isto é teatro essencialmente corpóreo, com entrega total. Lindo de se ver e viver.

A poética se encontra, ainda, na própria beleza da história de um Professor que, no cenário mais desolador – diante de um sistema estudantil precário e opressor – consegue o impossível: cativar, captar a atenção dos alunos, ao contar uma história de forma intrigante e performática.

Assim sendo, gentilmente o Coletivo Ocutá ainda nos brinda enquanto plateia quase com um espetáculo dentro do outro, mostrando a emblemática história de “Crime e Castigo”, de Dostoiévski. Não é pouca coisa.

Válido um destaque especial, aqui, para a composição cênica. Os livros espalhados pelo chão me parecem uma provocativa do paradoxo de uma luta extenuante – em favor da literatura – quando nada mais parece fazer sentido. A vontade de desistir e jogar para o alto.

Ao mesmo tempo, o entendimento de que livros salvam. Especialmente porque são portas de outros universos quando a vivência do real é absurda e completamente insuportável.

De modo mais estritamente analítico, sob minha perspectiva de uma mulher branca – e que não aprecia muitos rótulos e, no entanto, para fins de se “situar” talvez hoje se identificaria como bissexual -,  penso que a peça contempla a representação da dor da mulher negra, por meio da personagem Marta.

Sim. Isto é fato incontestável.

Entretanto, por mais que esta seja interpretada pelo coletivo de homens negros (algo que também se mostra uma excelente provocação), ainda assim sinto falta de uma atriz negra neste papel. Não haver uma presença de mulher ali me incomoda. 

Esta ausência, penso, me desacomoda justamente porque ela mesma no palco é um sinônimo da invisibilidade da negritude feminina nesta sociedade ainda tão racista, quanto patriarcal. 

Entendo que a peça fala da dor causada por uma sociedade machista para todes nós – uma vez que os estereótipos colocados ao homem negro também são extremamente pesados. Mas não sei se posso ir mais além deste ponto, considerando meu lugar de fala.

“Não atender a estereótipos também é resistir”

Na perspectiva de Cíntia Bitencourt, mulher negra, bissexual e não-monogâmica, estagiária de Inclusão, a peça faz refletir sobre como a construção da autoestima é, em verdade, coletiva. 

“É algo que, na minha vivência, eu nunca tinha pensado dessa forma, justamente porque fui me construindo e lutando para me amar de forma muito individual e solitária. O que é um reflexo da nossa sociedade, do neoliberalismo e até mesmo do capacitismo”, pontua.

“Então, ter me enxergado tanto em tantas cenas me deixou do avesso, me lembrou e me fez sentir humana de novo. Já faz algum tempo que tenho me sentido incomodada com as expectativas das pessoas em relação ao que deve ser uma mulher preta no país que a gente vive, como deve se portar, do que deve gostar. como se existisse de fato uma régua do que é mais preto e o que não é (e não estou falando de colorismo)”, acrescenta.

Para Cíntia, não atender a estereótipos também é resistir. “Não quero me sentir desconfortável para caber em espaços que diminuam, que me façam pensar que estou errada em, por exemplo, não dançar pagode! Porque isso não me torna menos negra”, frisa ela. 

“Na peça, me vi muito no personagem do Henrique, mas também me vi muito no Pedro e na Marta. Acho que cada um conta um pouquinho sobre mim, sobre coisas que passei ao longo da vida pra chegar até aqui, para estar viva. Me vejo educadora no futuro, então me marcou muito ter essa referência do professor tão marcante, de tanta luta e resistência”, destaca.

“A gente se acostuma com a violência e se esquece da vida. Se esquece que antes do tiro, antes de ser alvo, antes de ter a vida tirada por uma sociedade racista, houve uma vida imensa”, recorda. Conclui em uma análise poética que a peça “é uma aula ‘daquelas’, de se dar com a alma uma coragem que bala nenhuma atravessa, pois ancestralizar também é viver. Viver em quem fica”.

Arte possibilita justamente aquilo que faz a humanidade avançar: o debate de ideias, a expansão da consciência individual e coletiva, o senso crítico

De minha parte, Rafaela, concluo afirmando que fui acompanhar “O Avesso da Pele” cheia de perguntas, mas descobri que poderia ser mais sábio estar lá para escutar. O som. A voz. O texto. O dizer. As gírias destas pessoas potências.

É lindo, sobretudo, relembrar esta possibilidade que a arte oferece de, literalmente, nos darmos as mãos, como acontece em certo momento do espetáculo. Também de sentir impacto – recordo não ter acordado tão bem no dia seguinte à apresentação.

Talvez justamente por ver o quanto ainda temos a avançar. E relembrar a urgência de fazê-lo. Porque arte tem disto também: remexe as entranhas, toca nas feridas. Mas possibilita, a partir daí, que nos tornemos seres humanos melhores.

Principalmente por, independentemente das opiniões pessoais, viabilizar justamente aquilo que faz a humanidade avançar e, por consequência, ser o grande alvo da ditadura que censura: o debate de ideias, a expansão da consciência individual e coletiva. A construção daquilo que é capaz de tirar o oprimido de sua posição: o senso crítico. 

Esta é a beleza estupenda de tudo. 

Obrigada, Coletivo Ocutá, Tenório, plateia e todes que estiveram lá por esta experiência.

E você, já viu “O Avesso da Pele”? Caso tenha acompanhado, me conta aqui nos comentários as tuas percepções! 

(ps: e se você não viu, fique ligado na agenda do grupo na página do Insta: @oavessodapele – eles vão rodar o Brasil com o espetáculo, quem sabe cheguem aí na tua cidade também?)

RESENHA: Livro Em Busca de Mim, de Viola Davis é honestamente acolhedor

Ao me propor a escrever sobre o livro “Em Busca de Mim”, autobiografia da produtora e atriz Viola Davis – vencedora do Oscar , a primeira palavra que ressoou internamente foi honestidade. Sim. 

Talvez seja esta a parte mais bonita de ler sobre sua intensa e marcante trajetória de vida: sentir proximidade com alguém que está disposta a expor vulnerabilidades. Também a partilhar memórias de uma forma nua e crua, mostrando verdades dos bastidores de sua história pessoal e da indústria.

Viola, cuja infância foi marcada por profundos traumas, hoje dança com sua vergonha.

Saber dos abalos que a atravessaram – incluindo marcas da pobreza, alcoolismo e abuso sexual – e ver como, ao invés de deixar-se aniquilar por eles, transformou-os em combustível para a construção de suas personagens densas, complexas, emocionalmente profundas é inspirador.

Expor sua própria história, por si só, não poderia deixar de ser um manifesto feminista e antirracista – ainda que o tom de suas palavras não denote isto como um propósito pré-definido para a escrita do livro.

Ao rememorar sua trajetória até o momento da publicação da obra (em 2022, no Brasil pela @editorabestseller), o que Viola parece fazer é assumir os méritos de seu sucesso, mas explicitando também que sua trajetória é um ponto fora da curva.

Viola sabe, sem que isso a faça melhor ou pior que ninguém – como ela própria parece perceber – que o destino já previamente traçado para a imensa maioria das pessoas de sua cor é a violência, a pobreza e o desamparo. Por consequência, uma vida muitas vezes associada ao abuso psíquico e químico. 

A atriz assume suas vitórias e seu ímpeto de superar as piores condições imagináveis sem, no entanto, deixar de reconhecer que a sorte também manifestou um papel relevante.

Em outras palavras: sem transformar sua narrativa de superação em um manifesto em favor da meritocracia. Admirável.

Em resumo, Viola nos oferece aqui uma história de amor, resiliência, fé e beleza. 

Particularmente, fico aqui ansiando para que ela dê uma de Ritinha Lee e lance muitas outras biografias. Fico na expectativa de ler.

E você? Chegou a ler o livro? Qual foi a percepção que mais te marcou? Aproveite para compartilhar comigo aqui nos comentários.

Um abraço e até a próxima resenha,

Rafaela  

O que você quer em 2024?

Pássaro Curicaca sobre a água. Foto: Rafaela Dilly Kich

Querida pessoa,

Por aqui, esqueço tão rapidamente do que fiz de belo para pensar no que preciso fazer em seguida. Para semear minhas palavras. Ajudar minha família. Procurar ser uma pessoa melhor.

Por um lado, acho, isto é bom. Significa que há pulsão, movimento.

Por outro, ainda há tanta vergonha e punição no processo.

Será que trabalho o suficiente?

Em geral, as mulheres trabalham tanto. Dentro de casa, tudo parece trabalho.

Mas há uma diferença entre trabalhar e ser remunerada. Eis uma ansiedade que se produz.

E que se “desproduz” com a escrita. Que nem sempre remunera. Mas revive.

Em 2024, quero mais disso. Reviver.

Quero saborear cada momento. Estar com a pessoa que está na minha frente – não constantemente com o celular.

Quero estar lúcida para a vida. Menos tímida, ou intimidadora. Sobretudo, quero fazer o que amo.

Também crer que, se me permitir isto, tudo o mais estará provido.

Obrigada a você, querida pessoa, por me ler.

Me despeço pedindo: o que você quer em 2024?

Meu desejo é que você possa usar mais o seu tempo para fazer aquilo que ama.

RESENHA: Livro – “A Vida Mentirosa dos Adultos”

O impacto da palavra de um pai. A passagem – inevitavelmente, de algum modo -, traumática da infância para a adolescência.

A vergonha. O medo. A curiosidade. A descoberta da sexualidade. Todos estes elementos constituintes da experiência de uma jovem são costurados no romance “A Vida Mentirosa dos Adultos”, assinado pela escritora Elena Ferrante.

A indicação do livro por parte da atriz Natalie Portman foi o que, de antemão, me inspirou a mergulhar no texto da autora. Esta que, de fato, a meu ver, possui a capacidade brilhante de adentrar na psique humana.

Ferrante cria um enredo intrigante, com reviravoltas marcantes e seu grande mérito é a empatia capaz de gerar pelas personagens, humanizando-as.

O texto tem um tom psicanalítico, permitindo um mergulho no mundo interno de Gianni – a protagonista – a partir de uma frase escutada sem querer pelos lábios do pai: a de que ela estaria ficando “igual à Tia Vittoria”.

Tia, esta, que pelas narrativas parentais era sempre mencionada como uma mulher na qual “feiura e maldade coincidiam perfeitamente”.

O impacto da frase parece ser fator norteador da narrativa desde o princípio até a última página do livro. O que, naturalmente, evidencia o peso da palavra saída do genitor do sexo masculino para Gianni.

Ela permeia tanto a imagem que a menina faz de si própria, quanto suas decisões – sejam elas de cunho sadio, ou autopunitivas – em seu desabrochar. O impacto da sentença culmina na necessidade urgente da personagem de descobrir a pessoa por trás deste “rosto misterioso” que agora também a molda.

Assim, ela passa a explorar tanto os cantos inexplorados da cidade onde mora – Nápoles -, quanto os segredos que a família guarda.

Em uma jornada instigante reveladora de traições, insensibilidades e a descoberta de um universo adulto que retira os pais do pedestal onde geralmente são colocados pela criança, o que Ferrante nos oferece, sobretudo é a possibilidade de um olhar muito íntimo.

Olhar, este, que deixa algumas perguntas-legado importantes:

Será que, enquanto adultos, nós medimos suficientemente bem as palavras que usamos para falar com crianças e jovens, considerando o impacto que têm em suas vidas? (Em certo momento, a personagem chega a pensar diante do elogio de outro homem por sua beleza: “Cuidado com o que você diz. Meu rosto já mudou por causa do meu pai e me tornei feia. Não brinque de mudá-lo você também, tornando-o bonito. Estou cansada de ser exposta às palavras dos outros”).

Assim, outra questão:

Como a vida de jovens mulheres é atravessada pela presença, a sentença, o poder e a sexualidade masculina?

Qual é o impacto de todos estes elementos em sua própria percepção do desejo, do prazer e da experiência sexual, em si?

Para toda menina que já se tornou, ou segue em sua busca de tornar-se – como diria Beauvoir – mulher, penso que esta leitura será como um abraço compreensivo.

E você? Já leu “A Vida Mentirosa dos Adultos”? Se tiver mais contribuições sobre a obra, compartilhe aqui que adorarei saber. 💛

“Meu Negócio é Cantar”, a frase que me marcou em Gal

Fotografia da Cantora Gal Costa, na década de 1970, com sorriso aberto, batom avermelhado, cabelos longos, escuros e ondulados. Foto de Domínio Público.

Foi lindo, impactante ver a frase saindo dos lábios de Sophie Charlotte, interpretando Gal Costa, usando sua voz. Isto na mais recente adaptação cinematográfica – que chegou às telonas agora em 12 de outubro de 2023 – sobre a vida da cantora, com direção compartilhada entre Dandara Ferreira e Lô Politi.

Voz é poder político. Cantar é um ato político. Não necessariamente partidário. Mas é política.

Aliás, tomei nota de algumas reflexões pontuais e essenciais que o filme me trouxe:

✔️ O que cantamos e escrevemos, enquanto artistas e mulheres, é político. Escolher sobre o que falar. É política.

✔️ O que vestimos e como nos vestimos. É política.

✔️ Sair de casa. É política.

✔️ O que assumimos de prazer para nós mesmas. É política.

✔️ O que fazemos em nossas relações é político. Afetar-se é política.

✔️ O que se compra. O que se come. O que se bebe. É política.

✔️ O quanto/com que se trabalha e como se trabalha. É política.

✔️ Como usamos o cabelo. É política.

✔️ Como nos locomovemos. Avião, carro, metrô, trem, ônibus, barco? É política.

✔️ Não silenciar diante de abusos. E buscar aprender mais sobre nós mesmas e mesmos para evitar padrões abusivos. É política.

Talvez o ponto central aqui seja:

💭 O quanto disto tudo fazemos de forma consciente e o quanto é INconsciente? Como trazer o inconsciente à dimensão consciente?

Jamais ousaria dizer que tenho todas as respostas. 📖 Mas sinto, depois de ver Gal, um sopro de certeza de que a música auxilia no processo. Ela toca, vai em algo do ser humano de dimensão muito profunda.

Livros, música, estudo…apontam caminhos à sanidade, civilidade, humanidade.

E tu? Concordas comigo? Fique à vontade para me contar nos comentários – ou trazer outros questionamentos/levantamentos.

📷: Foto – Cantora Gal Costa, imagem de domínio público.
✔️ #pratodosverem: Fotografia da Cantora Gal Costa, na década de 1970, com sorriso aberto, batom avermelhado, cabelos longos, escuros e ondulados. Foto de Domínio Público.

Pérola: um filme sensível sobre a tessitura dos afetos na passagem do tempo

Leo Fernandes e Drica Moraes em cena do Filme Pérola, com testas encostadas uma na outra em posição de afeto. Foto de Marcinho Nunes - Divulgação

Foto: Marcinho Nunes/Divulgação

O que nos afeta? Como lidamos com o que nos afeta?

Pérola é um filme “joia” que mergulha a espectadora e o espectador justamente na história de uma família brasileira que, na cidade de Bauru – interior de São Paulo -, começa a construir novos sonhos, em um novo lar.

Gentilmente, o diretor Murilo Benício nos apresenta as personagens deste núcleo e, a partir daí, propõe reflexões acerca desta tessitura dos afetos: a “matéria-prima” que constitui a vida dos seres humanos do início ao fim.

Com enfoque principal na relação mãe-filho, o filme apresenta uma espécie de “flashback” da história de Mauro (Leo Fernandes) que, diante da morte da mãe – apelidada de “Pérola” (Drica Moraes) – passa a rememorar suas lembranças. “Passeando” por memórias da vida adulta à infância.

Sonhos de cada um, os conflitos em relação ao dinheiro, as ambições materiais e espirituais, tudo o que atravessa a experiência humana dentro do contexto familiar. Com doses muito bem colocadas de humor e seriedade, o filme passeia por temas extremamente atuais.

Há janelas muito interessantes para eventuais debates abertas pela obra, como o envelhecimento da população e o impacto disto no contexto das famílias.

Também a possibilidade de uma família “acolher” um filho homossexual e, ainda, o alcoolismo (até que ponto a caipirinha é uma “diversão” e até que ponto é um “remédio” adotado para lidar com as dificuldades da vida e aquilo que não se consegue transformar em palavra?).

Outro tema que abre margem para diálogo é a inserção mais iminente da religião no contexto familiar e como ela atravessa sua estrutura, contemplando mais uma pauta genuinamente contemporânea.

Em especial no que se refere à ascensão das Igrejas Evangélicas. Para além de classificar esta presença religiosa como “boa” ou “ruim”, a ideia do filme é proporcionar conversa.

Naturalmente, passeando por todos os percursos citados, a adaptação cinematográfica da peça autobiográfica de Mauro Rossi também aborda a tão intensa relação mãe-filho. Esta que se constrói em ausência e presença.

Após o fim da sessão, conversando com as psicólogas Maria do Carmo Dilly e Carla Haupenthal tecemos ainda mais algumas observações. Em especial, a questão da confiança – sentimento bonito quando se solidifica na relação parental.

Como quando, por exemplo, Pérola pergunta a Mauro: “posso mergulhar? A piscina está limpa?”. Piscina, esta, que simboliza um projeto. O sonho daquela mãe. Que, por mais que demore para se realizar, vai ganhando estrutura com o tempo. Também, assim, é um “norte”, algo que move esta mulher adiante.

Afinal, como lindamente colocou a atriz Drica Moraes em entrevista ao “Conversa com Bial”:

“Estar vivo é fazer projetos”.

Talvez por consequência, a piscina simboliza também um elo que solidifica, traduz a conexão entre os componentes da família, em meio aos projetos pessoais de cada um.

Afinal, a cena inicial do carro que ficava “apertado” na garagem já parecia dar uma pista: para alguém ali, o espaço era pequeno demais para o tamanho do sonho. Este não cabia só no universo familiar.

Enfim, “Pérola” é sobre isto também. Pensar a família. Esta estrutura que permanece como símbolo de um porto-seguro, apesar das discordâncias, atritos, desencontros.

Mauro sentia-se incompleto naquele lugar, mas sabia que era um ambiente ao qual sempre poderia retornar “apesar de”.

Apesar de”, como diria Lispector.

O que cabe dizer sobre o filme em última instância, talvez, é que se trata de uma adaptação que versa sobre a poesia do cotidiano, as belezas e tristezas da passagem do tempo, as alegrias e entraves na comunicação. E aquele olhar que permanece comum: o dos afetos.

Deixa, ainda, algumas perguntas-legado: “o quanto de nossos sonhos cabem na realidade? Como equilibrar esta equação entre o universo do desejo e da materialização do mesmo? Como dividi-lo com quem amamos – dentro ou fora do núcleo familiar?”.

Por fim, uma dica última: prestigie nos cinemas. Streaming é gostoso, confortável, mas sair de casa e viver a experiência da arte e seu impacto no coletivo é potente. Afeta, de fato.

E você? Acompanhou “Pérola”? Sinta-se à vontade para partilhar suas percepções nos comentários.

“A Casa dos Prazeres” é um filme que faz questionar: por que uma mulher não se prostitui?

Atriz Ana Girardot, com cabelos longos e morenos e antebraço erguido - em fotografia sobre um fundo vermelho de bordéu - cena do filme "A Casa dos Prazeres".

Foto: Imovision/Divulgação

O que é o corpo humano?

O que é o corpo da mulher?

Um produto. Uma mecânica. O casulo de uma alma.

Talvez todas as anteriores hipóteses. A depender do contexto.

Ao pensar o modelo ocidental patriarcal capitalista, o grande mérito do filme francês “A Casa dos Prazeres” é justamente levantar estas questões.

Nele, a protagonista Emma Becker (vivida por Ana Girardot) decide viver na pele uma experiência “inusitada” para tecer a linguagem e mergulhar em profundidade na escrita de seu novo livro. E passa a se prostituir na cidade de Berlim.

O que ela busca, porém, de fato?

Talvez uma resolução de suas próprias questões de infância? A possibilidade de um prazer próprio? Pagar as contas e o aluguel do apartamento que divide com a irmã?

Ou, ainda, inverter a moral que esmaga a mulher socioeconômica e psiquicamente – aceitando receber um valor/hora de salário mais alto do que passar um dia na fábrica?

Seria, ainda, um ato de generosidade, do desejo de proporcionar prazer ao outro? A busca de um pai? Um cuidador? A necessidade de ouvir histórias? Ser vista?

Penso que o longa propõe todas estas interessantes nuances. Acompanhá-lo me fez lembrar de Naomi Wolf, em “O Mito da Beleza”, dizendo que uma pergunta essencial para compreender a prostituição não é: “por que uma mulher se prostitui?” – e, sim, “por que uma mulher não se prostitui?”

É fato que, em alguns momentos, o filme ainda me parece se equivocar em meio a certos clichês.

Por exemplo: a câmera lenta na cena de sexo com um possível namorado, alguém a quem ela aparenta se entregar “inteiramente” à libido para além do sexo mecânico.

O que se pode dizer, de todo modo, é que ao fim do longa a personagem parece encontrar o tom de suas palavras com precisão para a escrita de seu livro a partir da experiência vivida.

Quase invertendo o questionamento que proponho no início deste texto:

O que é o corpo do homem?

E, talvez, caiba ainda uma última “pergunta-legado” ainda mais interessante para mim e para você, leitora ou leitor:

Como seria para você, mulher que me lê, estar no corpo de um homem? Consegue imaginar?

E a você, homem que me lê, como seria estar no corpo de uma mulher?

Caso queira compartilhar a resposta, sinta-se à vontade nos comentários.

Filme em cartaz na Cinemateca Paulo Amorim da Casa de Cultura Mario Quintana.

“Ângela” é um filme que propõe uma reflexão urgente: como homens e mulheres podem se libertar de relações destrutivas?

Isis Valverde caracterizada como "Ângela", posando de biquini, chapéu e colar, com braços sobre a cabeça, na praia de Búzios.

Foto: Divulgação/Downtown Filmes

“Ângela” – cinebiografia estrelada por Isis Valverde e Gabriel Braga Nunes (2023) – é um drama que retrata a história com fim trágico de Ângela Diniz (1944 – 1976), socialite mineira, abraçando como ponto de partida o relacionamento com seu então “parceiro”, Raul Doca Street.

Nesta produção inédita, acompanhamos a história de uma mulher. Humana. Em uma sociedade criada, guiada, legislada, orientada por homens. Como, em certa sentença do filme, a própria protagonista coloca:

“O problema é que a lei nunca está do nosso lado. A lei é feita por homens. Eternos garotos”.

Diante deste contexto, vemos o retrato de Ângela lidando com situações internas e externas conflituosas, onde causas e efeitos da estrutura patriarcal se misturam. Assim, mergulhamos em todas as complexidades de sua psique. 

Por vezes, ela aparenta estar muito segura de si. Em outras, muito confusa. Como a própria refere em dado momento:

“Às vezes acho que estou voando, às vezes acho que estou caindo”.

Fruto destas oscilações, vemos também uma mulher que por vezes é extremamente autoritária e, em outras, humilde o suficiente para se desculpar. Como ocorre no caso da relação conturbada inicial com a colaboradora da casa, Lili – vivida por Alice Carvalho 

Colaboradora esta que, aflita, acompanha o desenrolar da relação violenta e isolada de Ângela e Raul em sua casa de Búzios. E, por vezes, demonstra não saber exatamente como interferir. Em algumas cenas, inclusive, a câmera sugere que ela estaria pronta para medidas extremas (como o close em uma faca de cozinha).

Por sua expressividade e entrega no papel – a meu ver-, Alice explicita como o desenvolvimento da empatia entre mulheres pode ser um caminho para obstruir o ciclo de violência (embora nem sempre seja capaz de evitar o feminicídio, em um país onde a política de “não meter a colher” no relacionamento alheio ainda impera).

Penso que talvez – seja pelo intuito de “apimentar” o longa e/ou prender a atenção – há certo excesso de cenas de sexo e, com isto, o filme possa se equivocar em alguns momentos no sentido de confundir a ideia de que a expressão mais carnal da libido, por exemplo, pode conduzir a fins violentos. A uma espécie de tragédia.

Inquestionavelmente, sobretudo, a meu ver, Ângela traz o retrato de uma mulher corajosa e que teve uma morte absurda e precoce. Por feminicídio. Crime cuja pena, até 2023, poderia ser abrandada por argumento de “legítima defesa da honra” – ao qual apelou Raul após assassinar a ex-companheira com três tiros no rosto e um na nuca.

Por fim, penso ser válido ressaltar que o filme levanta algumas perguntas-legado de cunho psicanalítico: o que é este complexo de inferioridade do ser humano que pode levar ao ciúmes doentio? Como superar esta complexidade de amadurecimento psíquico para libertar homens e mulheres de relações desequilibradas e codependentes?

Justamente por abrir margem para estas questões, o filme se mostra extremamente essencial no contexto atual. E, apesar do enredo trágico, a mim particularmente é sempre um deleite ver Isis Valverde atuando. 

Parabenizo o Diretor Hugo Prata e os Produtores Fabio Zavala e Daniel Caldeira, também em nome de toda a equipe envolvida na produção. 

Viva o cinema nacional.

É possível evitar a Guerra? Eis uma pergunta-legado do filme “Golda: A Mulher de Uma Nação”

Trailer: Divulgação/Diamond Films

“Golda: A Mulher de Uma Nação” apresenta a brilhante Helen Mirren no papel de Golda Meier  – Fundadora e Ex-Primeira Ministra de Israel. 

Vemos, no decorrer do longa, a “Dama de Ferro israelense” (como a crítica avaliou) conduzir sua nação – coordenando a inteligência e a Força Militar – durante a Guerra do Yom Kippur (1973). Isto quando Egito e Síria atacaram Israel de surpresa no Dia do Perdão, um feriado religioso, deixando um saldo de mais de 2.500 israelenses mortos durante 19 dias de conflito.

Em sintonia com o jogo político, econômico e religioso que se estrutura – envolvendo também o Sionismo (a luta do povo judeu pelas terras de Israel) – o diretor israelense radicado nos Estados Unidos, Guy Nattiv, nos leva também aos bastidores das guerras “interiores” das personagens. Sobretudo, no que diz respeito às mulheres.

A de Golda, que se mantém firme diante das lideranças, mas, nos bastidores do “jogo de xadrez” , ainda age de forma autodestrutiva consumindo doses elevadas de cigarros e xícaras de café. Isto ainda em meio a sessões de radioterapia para um câncer que trata escondida. 

Também a de uma mãe, no papel de secretária, que datilografa as atas das reuniões políticas, sabendo que seu filho está na linha de frente de combate e será diretamente impactado pelas decisões ali tomadas. Seu drama – entre a documentação de fatos e lágrimas – traz a dimensão ainda mais tangível do impacto da Guerra sobre a vida humana.

Assim, imerso em uma fotografia de atmosfera sempre cinza e melancólica, o longa nos deixa algumas “perguntas-legado”, como referenciei no início deste texto:

  • Afinal, é possível evitar a Guerra? 
  • Por que o diálogo entre nações, tantas vezes, só se torna possível APÓS mortes e ameaças? Não seria melhor à humanidade poupar as vidas que se perderam antes?
  • Ao se considerar a trajetória política de uma mulher, de que modo seus sacrifícios pessoais em favor de uma nação se aprofundam ainda mais?

São alguns dilemas provocados. Em especial, quando o roteiro traz frases marcantes atribuídas a Golda. Por exemplo: “saber quando se está perdendo é fácil, difícil é saber quando se está ganhando”.

Em minha opinião particular, a Guerra – independentemente do lado vencedor – é, de algum modo, uma derrota. Quando o inconsciente triunfa em relação ao consciente e as trevas da psique humana ofuscam a luz, enfatizando todo o horror que gera a impossibilidade de uma comunicação humana não-violenta.

Isto, ainda, arrastando consigo um saldo negativo de valor inestimável e um lastro de dor irreparável. Aquele da perda de vidas. Portanto, não sei se seria possível evitá-la. Mas, como escreve Freud em “A Interpretação dos Sonhos”, em uma sociedade civilizada, “a tarefa da humanidade é evoluir”.

Se não for possível evitar a Guerra ainda por completo, então, que possamos seguir ao menos nortead@s por este ideal. Como? A partir da autoanálise, do autoacolhimento e da empatia para com as outras pessoas.

Por fim, creio que sim: as mulheres na política – como em outras profissões e diversos aspectos da vida em sociedade -, tendem a um sacrifício maior de suas vidas para ocuparem qualquer espaço de poder.

A começar pelo simples fato de sustentarem um lugar que não costumava ser legitimamente por elas ocupado – ainda que seu pulso seja firme e sua posição, respeitada. Tanto é que, nos momentos em que a “Síndrome da Impostora” atacava Golda, era Lou Kaddar (sua amiga e assistente, vivida pela atriz Camille Cottin), quem a acolhia.

Em minha percepção, uma prova de que, no que se refere às mulheres, só conseguimos ocupar espaços de poder se estivermos de mãos dadas, firmes e unidas.

E tu? Conseguiste acompanhar o filme? Se quiseres, sinta-se à vontade para deixar tua opinião nos comentários. 

Resenha – Filme “A Baleia”

ator Brendan Fraser com expressão triste e agoniada no filme "A Baleia"

Foto: A24/Divulgação

Até que ponto pode chegar o ódio por nós mesm@s?

Para mim, esta é a pergunta-legado do novo filme de Darren Aronofsky – diretor que figura na lista dos meus favoritos -, chamado “A Baleia”.

No longa, uma de suas mais recentes críticas ao modelo norte-americano capitalista de sociedade, deparamos com um personagem protagonista empenhado em um processo (que por vezes parece consciente, em outras não) de completa autodestruição pelo ato de comer compulsivamente.

Em minha percepção, o “comer compulsivo”, embora literal, é, no entanto, também uma simbólica metáfora pela busca de nutrir um buraco mais profundo deixado pelo vazio existencial e um vibrante, potente, irrefreável sentimento de culpa. Esta, motivada por uma série de razões que, no decorrer do longa, tornam-se mais nítidas.

Entre elas, questões demasiadamente humanas e atuais: “fracasso” na relação matrimonial, dificuldades na relação parental, um amor homossexual tido pela sociedade – e a religião, em especial – como “errado”. Religião esta, aliás, que, diante de seu próprio feito de destruição psíquica, parece depois querer enviar “mensageiros” dispostos a corrigir os danos por ela mesma criados. 

O filme apresenta discussões que podem se estender por horas em distintas direções, permeando temas como o surgimento de seitas, os danos em potencial causados pelo teletrabalho, a dificuldade em se estabelecer um diálogo não-violento nas relações, o distanciamento social, o sedentarismo e a ascensão de ideologias de extrema-direita.

O que se pode constatar ao longo do filme, sobretudo, é que observar alguém em processo autodestrutivo, como já evidenciou Aronofski em outras de suas obras, simboliza uma das mais doloridas experiências humanas. 

A agonia talvez seja proveniente justamente pela constatação de por vezes ser impossível para alguém de fora refrear no outro esta necessidade tão mórbida de se punir. O trunfo final da obra é, em minha percepção, escancarar a questão: até que ponto cabe a nós decidirmos por outro alguém seu direito de viver e morrer? E como isso se dará?

 É legítimo acolher o suicídio (consciente ou inconsciente) de alguém, quanto este alguém escolhe ir? Ir é, afinal, uma escolha? Já não estamos todes indo, de todo modo, em direção à morte?

Talvez o que nos caiba, sobretudo, é cuidarmos também um pouco mais de nós mesmos. Isto é um modelo de autoamor.

Afinal, como em dado momento constata o personagem, o desejo de ajudar ao outro já é inerente ao ser humano – embora, muitas vezes, seja justamente aí que “passamos os pés pelas mãos”. 

Quanto ao outro, portanto, talvez procurar causar o mínimo de dano possível já seja um imenso trabalho. Um pouco de estrago, sob a perspectiva de Aronofski, possivelmente seja inevitável.

Mas que possamos amar a nós mesm@s, então, pode ser o mais próximo a uma mensagem de esperança deixada pelo diretor. A possibilidade de amparar outro alguém só é possível quando também nos amparamos.

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