As quatro estações do isolamento

A chuva que cai lá fora parece aprofundar o isolamento. Tempestade externa é convite a mais um inevitável mergulho interno. Além da impossibilidade de percorrer o mundo exterior, agora também é inverno.

Inverno fora, inverno dentro. Não que me assuste. Gosto do frio, da introspecção, do calor do fogão à lenha que cumpre bem o papel de me aquecer.

Já passei por todas as estações mentais estando presa entre quatro paredes. Olhei para o céu e agradeci por estar em segurança. Me culpei por saber que nem todos estão. Amei ainda mais a vida. Chorei as mortes e os descasos para com aqueles perderam as suas. 

Me diverti criando e recriando receitas. Deixei de comer porque a situação toda do país me embrulhou o estômago. Aqui dentro é frio e calor, risada e choro, alegria e tristeza.

E sei que as minhas questões parecem tão bobas, mas ao mesmo tempo são tão imensas.

Há os rostos. Às vezes temo que eles se dissolvam em memórias para sempre. O que é real? O que é ilusão? As pessoas atrás das telas…elas são as mesmas que amo e sempre amei. Só que agora não há toque, não há abraço, não há cheiro.

Meus sentidos carecem do encontro real. Das risadas amigas próximas. Até a cama parece grande demais só para mim.

Passei a ter uma relação cada vez mais ambígua com a tecnologia. Minhas mãos anseiam por pegar o celular e ouvir mensagens de todas as pessoas distantes, em seus lares, seja lá em qual cidade ou país estiverem.

Quero saber dos processos delas, das vidas delas, das alegrias delas, das dores delas, das músicas delas. Quero que estejam bem. Quero dizer que sinto saudades. Quero que não me esqueçam.

Mas digitalizar pessoas parece paradoxalmente ampliar meu vazio. É quando me recolho, pois não tenho certeza se sou capaz de suportar ausências sem data para acabar.

E há as notícias. O outro lado doloroso da tecnologia. Saber que cada vez que abrir o celular terei que ler sobre mulheres saindo do mercado de trabalho, mortes, injustiça, falta de empatia. Não posso me alienar e fingir não saber de nada. Só que me dói.

Não queria sentir isso. Seria mais fácil mesmo fugir. Vejo que há pessoas saindo, viajando, indo à praia. Por um breve momento, chego a pensar: “bem que eu poderia também”. 

Mas não. Não posso. Não é certo. Não é justo. Não é correto por aqueles que precisam se expor ao perigo por falta de opção.

Estou presa e meus privilégios me machucam. Eles gritam a necessidade inadiável de uma mudança no sistema. Às vezes quero berrar, pois fica nítido que a estrutura social vigente machuca a todos nós. Mas será que alguém se importaria?

Quero dizer para as pessoas comerem menos carne, pois isso ajudaria a evitar uma possível nova pandemia. Quero dizer para pensarem no próximo e não solicitarem um auxílio emergencial sendo que já têm dinheiro no banco. Quero dizer que precisamos ser empáticos, porque o mundo melhora quando existe igualdade, não competição.

Mas eu aprendi também no isolamento a não carregar o mundo nas costas. Intensifiquei a Yoga, a meditação. Talvez o melhor seja manter a minha mente centrada, mandar luz, energia boa, vibrações de amor aqui de dentro. Parece bobo, mas é poderoso.

Esse tempo só meu tem sido a primavera da minha quarentena. Sei lá. Há dias internamente primaveris, outros invernais. Tudo bem.

Sou mulher. Quando começo a pensar demais, a escrita me salva. Ou aquela louça que tá me esperando lá na pia para ser lavada. Boto uma música, canto, limpo.

Sempre há algo a fazer. E li algo da Lispector esses dias que virou uma espécie de mantra:

“Uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive, muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente. Foi o apesar de que me deu uma angústia que insatisfeita foi a criadora de minha própria vida.”

Apesar de, precisamos continuar.




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