O que vem depois da pele? O coração é testemunha

Fotografia: Cartaz de divulgação da peça “O que vem depois da pele”, do Satyros Lab

O clima de um espetáculo, por vezes, instaura-se já na recepção do público: acolhedora foi a experiência de entrar pela primeira vez no Satyros Bar para acompanhar a performance “O que vem depois da pele”. A fila fluía, as conversas paralelas demonstravam um tom de interesse despretensioso.

Enquanto mulher solo cito, contudo, que na fila fui abordada – e relato o fato aqui, pois farei costura com um tópico da montagem – por um rapaz (ex-ator, em suas palavras) que, por uma série de problemas de saúde, parou de atuar. Comentou minha aparência, contou-me sua história. Em dado momento, porém, disse: “para de me seduzir”. 

Obviamente, diante do ocorrido, fiquei irritada e disse: “não tô te seduzindo. Eu tô te ouvindo, cara!”. Me parece que vivemos em um mundo tão machista e desatento que, no caso citado, uma mulher escutando os problemas de um homem de forma atenciosa é lido como “seduzir”. E, ainda que fosse, que espécie de crime seria esse?

Em certa medida, coincidentemente ou não, a questão está inserida na criação teatral performática do Satyros Lab (que segue em cartaz, às sextas e sábados, às 21h, na Praça Franklin Roosevelt, 214, com ingressos antecipados via Sympla). Por que a mulher é, tantas vezes, condenada a troco de nada? Quem somos nós, perante a Justiça?

Performativo em profusão: Satyros e a Sociedade do Cansaço 

Entrando com mais foco nos méritos da performance, em si, entendo aqui que a criação se trata de um teatro de caráter performativo contemporâneo, ou seja, uma composição que segue a ideia de apresentar pontos de vista sem uma linearidade narrativa pré-definida. Engloba, portanto, diferentes signos, não apenas um único e sequencial.

Bem, em minha percepção, aqui está justamente o triunfo (senti-me representada pela imensa profusão de assuntos conflitantes, ideias e velocidades da vida moderna) da criação, mas também o ponto no qual ela, por vezes, se equivoca. Ao tentar agrupar elementos excessivos, em dado momento a força do que se pretende exprimir se perde.

De modo algum, porém, isso torna a performance completamente indecifrável. Ir pelo caminho da profusão é, sem dúvida, melhor do que deixar o espectador com sensação de vazio, ou mesmo de estar diante uma criação puramente autocentrada que nada tem verdadeiramente a dizer. Pelo contrário: o grupo tem muito a dizer. E quer muito.

A entrega de cada ator e atriz emociona, leva as e os espectadores às lágrimas em diversos momentos. Ao ler, posteriormente, sobre as referências críticas do grupo para a montagem – a exemplo do livro Sociedade do Cansaço, do filósofo Byung-chul Han -, entendi melhor qual é, de fato, a proposta estética-crítica-política do espetáculo.

Mensagens nos detalhes, para além das palavras

Parece-me que o grupo se propõe a questionar: onde fica o coração, o sentimento, diante de uma sociedade consumida pelas telas de celulares – um convite contínuo ao Burnout? Figurino, sonoplastia, cenário e iluminação aqui merecem todos os elogios, uma vez que, no que não cabe no texto, são signos lindamente pensados e executados que ajudam a elucidar a proposta.

Há uma escada em cena, cujo subir e descer é símbolo próprio do movimento da vida e convoca a uma provocação: quem nos tornamos para “subir” na escalada social, neste contexto de vida neoliberal? E há o coração, claro. Literalizado na forma de um “colar” que passa de um performer a outro no decorrer da peça. Imagem forte: entregar o coração.

Recorde-me da letra da música de Marisa Monte: “pra todo mundo a vida é difícil, mas todos fazem seus sacrifícios pra melhorar..”. Sim: em uma era contemporânea, parece-me que os Satyros querem provocar a questão: como nossa subjetividade, nosso “sentir” resistirá aos desafios dos tempos atuais? 

Como suportará nosso coração, tão atento e assustado, à robotização e aos esvaziamento do que é a matéria poética da vida, em detrimento do artificial? Precisaremos estar atentas e atentos para despertar, uns nos outros, uma percepção sensorial, sempre que perdida em meio ao correr da vida.

Sem coletividade, não haverá saída. Sem amor-próprio também não.

Conforme tensionou uma das performers do grupo ao fim do espetáculo: “qual é o peso que nossos corpos carregam?”. Particularmente, gosto muito desse teatro que me coloca perto da respiração e do movimento das pessoas em cena e do cenário Real do fazer teatro. Gosto porque é uma arte que aproxima, tangibiliza, convida a ser mais próximos, não apartados.

A própria Arte, em si, revela aqui seu porquê. Na saída, sorri para uma das performers do espetáculo. Seu olhar me cativou. Saí com a sensação de estar alimentada, mais do que isso, nutrida. E, portanto, (por tanto!), grata. A todes, assim, recomendo esse mergulho visceral em mais uma criação dos Satyros. 

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