Diários de Quarentena – Carta 3, Audrey Hepburn

atriz audrey hepburn

Foto: Youtube, Reprodução

Querida Audrey, 

Há algo em seu olhar. Sempre reparei. Um certo brilho, uma serenidade que emana compreensão. Talvez seja por isso que coloquei um quadro seu no meu quarto. 

É reconfortante escrever diante da visão de alguém que vibra luminosidade. Mas devo confessar: foi só realmente agora, neste período de isolamento social, que mergulhei um pouco mais profundamente em sua história.

Sua beleza foi realmente forjada na dor, não foi? Foi chocante descobrir, por exemplo, que durante a II Guerra Mundial, na Holanda, você teve de se alimentar de farinha de caule de tulipas para sobreviver.

Sofreu com a desnutrição extrema. Viu a capacidade da maldade humana em seu ápice.

Me pergunto: será que foi justamente vivenciar na pele o auge da miséria que a tornou uma mulher posteriormente tão conhecida pela infinita bondade, defensora dos Direitos Humanos? 

Às vezes me parece que a vida encontra caminhos estranhos para nos purificar por meio da dor. Talvez a empatia realmente só seja possível depois do sofrimento. Mas ninguém quer sofrer, não é?

No ano de 2020, parece-me que somos todos viciados em anestésicos. Obcecados por conforto. A televisão. O celular. A Netflix. As compras. A comida e a bebida. Queremos sempre tudo do melhor. Perdemos o apreço pelo simples.

Não temos mais dimensão do que é sobreviver à base de farinha de tulipas – nos desconectamos do sofrimento daqueles que têm menos que nós. Conto nos dedos as pessoas que conheço ainda capazes de sentir compaixão pelo próximo, contemplar a natureza, a arte, a música. 

Seres humanos quem encontram prazer nas pequenas sincronicidades da vida são cada vez mais raros. Quem ainda se emociona diante de uma flor?

Acontece que contemplar exige tempo – e coragem para olhar o vazio, que traz consigo memórias nem sempre agradáveis. Mas, por mais que pareça paradoxal, suprimir o sofrimento é ainda pior.

Anestesiar-se constantemente é uma forma de morte em câmera lenta. De vez em quando é necessário chorar, deixar doer, contemplar a agonia. Minha e do outro. Faz parte da condição humana.

É um processo estranho. Se abrir para a dor é o primeiro passo para lidar melhor com ela.

Você, Audrey, transformou a dor em bondade, gentileza. Penso que essa é a maior metamorfose pela qual uma mulher pode passar. Talvez daí venha sua aparência diáfana: límpida, translúcida, permitindo a passagem da luz.

Obrigada por me inspirar a, de alguma forma, ressignificar também minhas próprias dores e complexidades. Espero ser capaz também de me tornar um espectro de luz neste momento que a humanidade precisa tanto.

Um abraço,

Rafaela




Diários de Quarentena – Carta 2, John Lennon

John Lennon e Yoko

Querido Lennon,

Escrevo para contar que hoje pela manhã fechei os olhos e imaginei. Imaginei todas as pessoas vivendo em paz.

Contemplei um mundo de menos desigualdade, com menos apegos e crenças que geram ideais de separatividade entre nós. Exatamente como você descreveu.

Na verdade, tenho procurado fazer isso a cada novo dia neste período em que a morte cerca meu país. Faço questão de silenciar e sintonizar uma frequência positiva. 

De certa forma, em meus devaneios silenciosos, penso que compreendi o que você queria dizer quando escreveu sua canção. Mas não posso deixar de enfatizar o quanto essa utopia ainda parece distante quando a meditação termina e as notícias aparecem.

Há no meio do caminho o capitalismo selvagem, o racismo, o machismo, a cultura de estupro, a miséria. É como se a realidade esmagasse nossos sonhos de paz neste planeta.

Vou confessar: tenho muito medo de endurecer demais com tudo isso. Me pergunto em que momento exatamente a vida começa a fazer esse processo com a gente.

Quando ela passa a desmontar nossa inocência? Por que aparenta nos forçar a silenciar a alma em nome da sobrevivência até que todo o brilho em nosso olho se torne opaco? É algo tão sutil, mas triste.

Como canta o Ney Matogrosso naquela canção: 

“De repente a gente vê que perdeu

Ou está perdendo alguma coisa

Morna e ingênua

Que vai ficando no caminho…”

Mas essa carta não é para soar pessimista. Se você me conhecesse, na verdade, talvez saberia que tenho sido chamada por aí de otimista.

De fato, sou. Por mais dolorosa que seja a constatação de que a realidade é dura, queria dizer que você realmente não é o único sonhador

Eu também simplesmente me recuso. Me recuso a ceder à posição dos que creem que a vida é apenas um campo de batalha e não existe alternativa senão ceder ao lado assombroso e perverso da civilização e de minha própria sombra interna.

Ainda acredito – apesar de tudo – que cada ser humano carrega em si a capacidade de amar. Faço de tal ideal uma espécie de norte.

Existo pelo amor e, por ele, sou capaz de continuar. Vibrar paz e gentileza em um mundo no qual tudo se tornou produto – até a própria espiritualidade – nem sempre é tarefa das mais simples.

Mas talvez aí esteja uma pista. A vida nunca teve a pretensão de ser simplista. O que ela quer mesmo é nos estimular a sermos melhores a cada dia, mesmo quando só vemos sombras ao redor.

Você finaliza “Imagine” dizendo que espera que mais pessoas se juntem pelo ideal aparentemente distante do mundo inteiro vivendo como “um”. São palavras fortes que você semeou.

Elas continuam eternas aqui. Talvez eu também não esteja mais viva no futuro para ver o dia em que isso irá acontecer, mas sei que somos capazes de chegar lá enquanto humanidade.

Você nunca foi mesmo o único sonhador. Nem eu serei a única sonhadora.

Podermos ser como pontos espalhados em diferentes esferas de tempo, espaço e consciência, mas estamos de certa forma sempre conectados com quem partilha de nossos valores.

Obrigada por ter imaginado um mundo melhor.

Toda transformação realmente começa aí.

Um abraço,

Rafaela




Diários de Quarentena – Carta 1 , Lana Del Rey

carta escrita à mão com uma caneta em cima

Querida Lana,

Escrevo porque sinto necessidade de externalizar. Ontem contemplei o pôr do sol e comecei a pensar incessantemente, mais uma vez, sobre liberdade. Sei que, se há alguém no mundo que compreende meu anseio em encontrá-la…provavelmente é você.

Ser livre é tudo o que eu busco, meu desejo mais latente. Talvez não somente o meu, mas também o seu e o de todos nós, humanos.

É verdade que cheguei a buscar uma parte dessa utopia de liberação na estrada. E penso que você ficaria orgulhosa de ver o quanto me despi no decorrer do processo. Da minha própria cultura, dos meus preconceitos, medos e inseguranças.

Só que agora tal extensão da procura pela emancipação findou. Pelo menos por enquanto. A realidade é que agora não posso mais sair. Não é possível encontrar suspiros de consolo das amarras da sociedade no desconhecido da vida lá fora. Resta apenas eu aqui.

Isolada entre quatro paredes. E, por sorte e talvez algum mérito do que já conquistei como mulher, a tranquilidade da natureza ao meu redor para contemplar. Às vezes penso que a resposta é essa. Só o verde pode nos salvar da insanidade total.

Você já declarou que acredita “no país que a América costumava ser e na pessoa que você quer se tornar”. Tenho me apegado a isso por aqui também. Nunca antes enxerguei a realidade do meu país com tamanha clareza. O machismo, o racismo, a ignorância que me cercam. Há dias em que me sinto esfolada por tudo isso, não posso mentir.

Questiono de que servem meus ideais. Choro porque a dor do mundo e das pessoas me dói. Quase fisicamente. Mas tenho procurado formas de resistir.

Aliás, obrigada por ter escrito “Marina’s Apartment Complex”. Tenho pensado que talvez seja a música da minha vida. Ou, no mínimo, minha música dos últimos tempos, pelo menos em relação ao sentido que atribuí a ela.

 “Quem eu sou? Alguém que realmente acredita que as pessoas podem mudar”. E que, quando todos estão apenas falando, pode-se tomar uma posição. Quero ser esse tipo de pessoa. Quero acreditar no bem. Na luz e no amor. Alinhar discurso e prática.

Eu sei, sei que para mulheres ter esperança pode ser algo perigoso – você mesma alertou. Mas você diz que ainda a tem, de qualquer forma. Concordo. É preciso tê-la. Agir de acordo com nossos valores.

Às vezes me sinto como um ponto solto no ar vivendo com eles. Mas não os abandono. Porque a forma como vivemos é nosso maior ato político. Existir na vibração do amor em tempos de ódio já é uma forma de resistência, de luta pacífica, pautada pela serenidade e tecida por palavras doces.

Assim, retorno à ideia de liberdade. Ouso concluir que o que nos falta para encontrá-la é isso. Amor. Genuíno e desinteressado. Será que faz sentido?

Não sei. Mas, de qualquer forma, quero agradecer por sua música que, de alguma maneira, me faz sentir sã. Espero que você também siga inspirada pela arte. Quando nada mais fizer sentido, a poesia ainda pode nos salvar.

Um abraço,

Rafaela.




O que resta quando sua liberdade é tirada por força maior?

Anne Frank

Sempre que a vida me parece pesada, procuro inspiração nas histórias de pessoas que passaram por grandes provações e encontraram forças para sobreviver nas circunstâncias mais absurdas. Anne Frank foi uma delas.

Desde que acompanhei recentemente um documentário na Netflix sobre seus diários (chamado “Vidas Paralelas”), me pego pensando no que essa menina viveu. Se o isolamento às vezes parece difícil, imagine vivê-lo realmente sem a mínima possibilidade de contemplar uma saída?

Passar anos reclusa em uma casa, o perigo sempre à espreita, é algo que mal cabe nas possibilidades do meu imaginário. Afinal, sou obcecada por liberdade. Se há algo que sempre me incomodou é a ideia de obediência, de não ter possibilidade de escolha.

Não lido bem com nada que me seja imposto. Quando ainda trabalhava no modelo CLT, antes do meu ano nômade, o simples fato de ter que ceder a um formato de vida pautado pelas horas do expediente me atormentava silenciosamente (ainda que gostasse da rotina).

Penso que não estamos neste mundo para viver confinados em escritórios ou entre quatro paredes. Às vezes, porém, por motivos de força maior não temos escolha.

A arte alimenta a vida quando não há saída

Acompanhando a história de Anne (nesta adaptação super legal em que a atriz Helen Mirren narra trechos de seu diário), me senti estranhamente acolhida. Assim como a menina judia, meu conforto durante o isolamento são as palavras. Escrevo, crio, reinvento a rotina, descubro novas formas de tornar a vida em casa prazerosa.

Entre meus devaneios de menina branca privilegiada, o que me consola em meio ao medo e o caos social – lembrando que já estamos chegando a quase 96 mil mortes confirmadas, imagine só a situação além dos registros oficiais! – é ouvir novos lançamentos de artistas, ler, observar a natureza, praticar Yoga, falar com amigos.

Aliás, na semana passada a participação do Emicida no Roda Viva foi excepcional. Quanta lucidez em um artista. Precisamos que vozes como a dele se multipliquem. Que a arte mostre seu valor supremo quando tudo em que acreditávamos até então –  este capitalismo selvagem que nos levava do vazio ao nada -, está ruindo diante de nossos olhos.

Porque, pelo menos aqui, o isolamento escancarou que, quando nossa liberdade é subitamente retirada, as memórias que restam não são aquelas fúteis, associadas ao mero consumo de coisas. São as das pessoas, dos momentos partilhados, dos lugares visitados.

O mundo desaba, mas o valor do afeto é lembrado

Embora não costume me arrepender de nada que vivi, a situação do isolamento me trouxe uma compreensão mais lúcida de que aquilo que faz nossa existência valer a pena nada tem a ver com ambições. Sim, elas são importantes. Também nos movem. Mas as memórias que nos sustentam diante do mais terrível cenário não são essas.

Nos dias mais difíceis, são as palavras das minhas amigas e dos meus amigos que me ajudam e ecoam na mente. Também as lembranças das viagens, dos lugares maravilhosos que tive o privilégio de visitar, das pessoas que conheci. Contemplo fotografias, elaboro vivências, recordo trocas, conversas.

Nem por um segundo algo que comprei, ou uma ida ao shopping, me fortaleceu. Porque não é isso que deixa uma marca em nós. O que marca é o afeto

É dele também que sinto mais falta. Dividir um pôr do sol, uma música, um café. Lamento pelos museus que não visitei, por não ter ido mais vezes ao cinema. Penso que deveria ter mergulhado mais vezes no mar, viajado mais, feito mais trilhas, aprendido a surfar, abraçado mais meus amigos.

Sei que, no futuro, provavelmente ainda poderei fazer tudo isso. Mas é a impossibilidade de fazer agora que escancara, mais uma vez: a vida é sempre hoje.

Nós jamais podemos desperdiçá-la ou tomá-la como certa. Quando nossa liberdade é tirada é das recordações de afeto que sentimos saudade.

O consolo é que ainda temos a arte e podemos amar. Para isso, nunca é tarde.




O espaço entre uma respiração e outra

nuvens se dissipando no ar

Eu não costumava perceber. Eles simplesmente me escapavam. Falo daqueles pequenos intervalos da vida. A transição entre a alegria e a dor. O preenchimento e o vazio. Som e silêncio. Inspiração e expiração.

É que tudo pode simplesmente se misturar tão rápido. Até que fica veloz demais e você simplesmente se perde. De si mesmo(a), dos encontros, das belezas. 

Agora, isolada, percebo mais claramente.

Um pôr do sol que não foi contemplado jamais retorna. Tenho observado a forma como ele se vai, em um estalar de dedos, de um instante para outro. O espetáculo é sempre singular, não se repete de forma igual em nenhum dia – ainda que o de hoje se pareça com o de ontem.

Tudo é sempre mutação. É por isso que tenho procurado captar os instantes. Quando estamos entre quatro paredes eles se tornam mais visíveis e preciosos. 

A pausa no trabalho para ouvir uma música. Aquele tempinho de passar o café. Ler as páginas de um livro. Deixar o corpo inteiro no sol. 

Efêmeros, preciosos lapsos de vida que antes não existiam. Ah, como é bom identificar as pausas. Voltei a percebê-las. 

O Yoga aprofundou ainda mais minha compreensão de que há possibilidades para não sufocar, justamente no silêncio mental que atravessa o ato de inspirar e expirar. Esse pequeno, mas infinito instante que revela a essência de tudo. 

Ali há um lugar de paz incomparável, em que nada do que é externo importa mais. Não existe a culpa pelo que fizemos ou deixamos de fazer; nem medo, ansiedade e insegurança.

Até mesmo a raiva dos opressores, as aversões e discordâncias desaparecem. Todas as ilusões da mente dualista se dissipam. Resta serenidade e tranquilidade.

Abrir espaço para o “prana” (a energia vital) circular livremente é a chance de encontrar um caminho para cessar, ainda que por um breve instante, o peso de viver em uma sociedade brasileira ainda marcada por injustiças, abusos, dores, desigualdades e, atualmente, genocídio de minorias. Quando a realidade pesa, a mente pesa.

E o único caminho de sanidade é respirar. A pausa da respiração é o verdadeiro elo entre corpo-mente.

“O que quer que aconteça na mente influencia a respiração; a respiração se torna mais rápida quando estamos agitados e mais profunda e calma quando relaxamos”, escreve T. K. V Desikachar em “O Coração do Yoga”, leitura que recomendo fortemente para quem busca se aprofundar mais nessa filosofia, como tenho feito.

Em outros termos, a respiração revela nosso estado de espírito. E, quando paramos para voluntariamente administrá-la, aí então podemos redirecionar a própria atividade da nossa mente. Centrá-la para dentro, para o que é quieto, sereno, pacífico.

De fato, repare: qual é a diferença entre um organismo vivo e outro morto? O ar que entra e sai dos pulmões. E tenho dito que é tempo de respirar. Profunda e calmamente. Em casa, de forma segura, se for possível para você. Não é hora de apressar a vida para que ela volte a correr.

No Brasil, a pandemia não acabou.

E uma vida sem pausas para respirar, antes e agora, continua sendo apenas uma forma de vida “zumbi”. Procure os espaços de clareza, de sentir o ar entrar e sair dos pulmões. Todas as respostas aparecem ali.

Sigo encontrando as minhas e espero, de coração, que você encontre as suas também. 




O Conto da Aia não é uma distopia. É uma releitura ficcional da realidade.

Atriz Elizabeth Moss em O Conto da Aia

Acompanhei a primeira temporada da série “O Conto da Aia” no início de 2019, quando os primeiros instintos mais fortes ligados à causa feminista começavam a aflorar dentro de mim. As cenas eram impactantes, duras de assistir, mas persisti até o fim. Na época, porém, ainda não tinha dimensão real do que tudo aquilo significava.

Passa um ano. Brasil, 2020. Fanatismo religioso. Pandemia. Isolamento social. Acabei, enfim, com um exemplar em mãos do livro que deu origem à série, escrito pela canadense Margaret Atwood

Eu, a mesma pessoa, mas agora já também com mais de um ano de estudos feministas na bagagem, graças ao projeto desenvolvido junto à minha amiga Carolina Marco, o NÓS (por meio do qual criamos conteúdo gratuito para empoderar mulheres), pude realmente me aprofundar nessa obra crítica brilhante. Talvez equivocadamente chamada de distopia.

O fato é que, a meu ver, o mundo em que vivemos hoje parece tornar-se cada vez mais próximo do cenário da série. Vou explicar o porquê.

Elementos centrais de O Conto da Aia 

Distopia, segundo o dicionário, seria uma antítese de utopia. Em outros termos, diz respeito a um estado imaginário em que se vive em condições de extrema opressão, desespero ou privação (antítese de utopia). Sob tal perspectiva, caso ainda não tenha ouvido falar da série ou do livro, a classificação estaria correta.

Para dar um breve resumo, a história se passa na chamada República de Gileade. Trata-se de uma sociedade estabelecida nas fronteiras do que antes eram os Estados Unidos da América, tomado por um movimento fundamentalista de reconstrução cristã autointitulado “Filhos de Jacó”. 

Por meio de um golpe, ele suspende a Constituição sob o pretexto de “restaurar a ordem” social diante de um problema central: o país se encontrava tão poluído e tóxico que a saúde e a fertilidade da maioria da população feminina foi afetada e as mulheres pararam de ter filhos.

Basicamente, o que se passa é que sob o pretexto religioso é criado um Estado completamente totalitário, militarizado, hierárquico e fanático, que distorce textos do Velho Testamento para reorganizar o país sob um elemento central: a reprodução. As mulheres não têm mais a possibilidade de leitura, estudo ou autonomia de qualquer tipo.

Naturalmente, elas acabam divididas em “castas” estabelecidas, claro, por sua capacidade reprodutiva (existente ou inexistente). Cada uma está predestinada a executar uma função. A personagem principal, Offred, faz parte do grupo das Aias – mulheres obrigadas a se vestirem de vermelho e copularem com os Comandantes das casas que habitam, cujas esposas já são inférteis.

Mas há também as mulheres destinadas à limpeza e aos serviços domésticos, por exemplo. Cada uma na sua “caixinha”, no seu papel. Odiando – ou invejando – a outra pelo que ela ocupa. São justamente esses elementos sutis da narrativa que parecem transformá-la não mais em algo distópico. Mas, sim, em algo próximo da realidade de todas as mulheres, independentemente da classe social. 

Na verdade, O Conto da Aia simplesmente mistura aspectos já existentes e fortíssimos da opressão à mulher e imagina-os levados à máxima potência.

Violência que transparece nas palavras

Tive o insight de que o livro não era totalmente imaginativo justamente porque palavras são muito expressivas. Como a obra inteira é narrada em primeira pessoa, fui capaz de sentir o mesmo que Offred em diversos aspectos de sua descrição quanto à objetificação de seu corpo, os olhares de julgamento de outras mulheres e a educação estruturada com base na cultura de estupro, que tende a culpabilizar as vítimas pelos abusos.

Tomei a liberdade de expor, aqui, alguns trechos diretos que corroboram o que digo. Por exemplo: quando, no Centro de Treinamento ao qual às mulheres são enviadas assim que a República de Gilead é estabelecida, as “Tias” (espécies de freiras treinadoras) lhe fazem uma lavagem cerebral para que se submetam ao regime.

“Janine está contando como foi currada por uma gangue aos catorze anos e fez um aborto. (…) – Mas de quem foi a culpa?, diz Tia Helena, levantando o dedo roliço. ‘Foi dela, foi dela, foi dela, entoamos em uníssono.’ ‘Quem os seduziu?’, Tia Helena sorri radiante, satisfeita conosco. ‘Ela seduziu. Ela seduziu. Ela seduziu. ‘Por que Deus permitiu que uma coisa tão terrível acontecesse? ‘Para lhe ensinar uma lição. Para lhe ensinar uma lição. Para lhe ensinar uma lição. Na semana passada, Janine explodiu em lágrimas. (…) Nesta semana, ela nem espera que comecemos com as zombarias. ‘Foi minha própria culpa’, diz ela. Foi minha própria culpa. Eu os incitei, os seduzi. Mereci o sofrimento’. ‘Muito bem, Janine’, diz Tia Lydia. Você é um exemplo.”

Forte, não é?

Ou esta descrição de como Offred se sente em relação ao seu próprio corpo:

“Eu costumava pensar em meu corpo como um instrumento de prazer, ou um meio de transporte, ou um implemento para a realização de minha vontade. Eu podia usá-lo para correr, apertar botões deste ou daquele tipo, fazer coisas acontecerem. Havia limites. Mas meu corpo era, apesar disso, flexível, sólido, parte de mim. Agora, a carne se arruma de forma diferente. Sou uma nuvem.”

Ok, não podemos dizer que a realidade atual do Brasil está nesse nível de totalitarismo, obviamente. Mas, se você for mulher, provavelmente vai se identificar com algumas sensações evocadas pelo livro. Talvez sinta alguma cosquinha engraçada que lhe diga: já experimentei tal sentimento. Ou, inclusive, “já julguei outra mulher assim”.

Foi muito interessante que, quando terminei a leitura, compartilhei lá no meu Instagram justamente a perspectiva de que “O Conto da Aia” não é uma distopia. A Mariana Blauth, que foi minha colega na faculdade de Jornalismo e hoje coordena um projeto literário super bacana chamado Página Cem, me chamou no inbox e contou:

“Sabia que a própria autora falou em uma entrevista que ela classificaria sua obra como ficção especulativa, não distopia?”

Aí a ficha caiu. De fato, a narrativa do livro não é completamente impossível. Para algumas mulheres, em maior ou menor grau, é uma extensão da realidade. Daí, mais uma vez, a importância da luta feminista: é sobre fazer prevalecer nossos direitos para que a vida se torne melhor para as mulheres – e não pior.

Porque o pior é muito, muito, muito assustador. Como Atwood já alertou em sua fascinante obra-prima que parece distante no tempo, escrita em 1985, mas se torna a cada dia mais atual.

E você, já leu o livro ou acompanhou a série? O que achou? Teve alguma percepção semelhante? Me conta aqui nos comentários que eu vou amar saber!




As quatro estações do isolamento

chuva caindo no vidro com luzes desfocadas ao fundo

A chuva que cai lá fora parece aprofundar o isolamento. Tempestade externa é convite a mais um inevitável mergulho interno. Além da impossibilidade de percorrer o mundo exterior, agora também é inverno.

Inverno fora, inverno dentro. Não que me assuste. Gosto do frio, da introspecção, do calor do fogão à lenha que cumpre bem o papel de me aquecer.

Já passei por todas as estações mentais estando presa entre quatro paredes. Olhei para o céu e agradeci por estar em segurança. Me culpei por saber que nem todos estão. Amei ainda mais a vida. Chorei as mortes e os descasos para com aqueles perderam as suas. 

Me diverti criando e recriando receitas. Deixei de comer porque a situação toda do país me embrulhou o estômago. Aqui dentro é frio e calor, risada e choro, alegria e tristeza.

E sei que as minhas questões parecem tão bobas, mas ao mesmo tempo são tão imensas.

Há os rostos. Às vezes temo que eles se dissolvam em memórias para sempre. O que é real? O que é ilusão? As pessoas atrás das telas…elas são as mesmas que amo e sempre amei. Só que agora não há toque, não há abraço, não há cheiro.

Meus sentidos carecem do encontro real. Das risadas amigas próximas. Até a cama parece grande demais só para mim.

Passei a ter uma relação cada vez mais ambígua com a tecnologia. Minhas mãos anseiam por pegar o celular e ouvir mensagens de todas as pessoas distantes, em seus lares, seja lá em qual cidade ou país estiverem.

Quero saber dos processos delas, das vidas delas, das alegrias delas, das dores delas, das músicas delas. Quero que estejam bem. Quero dizer que sinto saudades. Quero que não me esqueçam.

Mas digitalizar pessoas parece paradoxalmente ampliar meu vazio. É quando me recolho, pois não tenho certeza se sou capaz de suportar ausências sem data para acabar.

E há as notícias. O outro lado doloroso da tecnologia. Saber que cada vez que abrir o celular terei que ler sobre mulheres saindo do mercado de trabalho, mortes, injustiça, falta de empatia. Não posso me alienar e fingir não saber de nada. Só que me dói.

Não queria sentir isso. Seria mais fácil mesmo fugir. Vejo que há pessoas saindo, viajando, indo à praia. Por um breve momento, chego a pensar: “bem que eu poderia também”. 

Mas não. Não posso. Não é certo. Não é justo. Não é correto por aqueles que precisam se expor ao perigo por falta de opção.

Estou presa e meus privilégios me machucam. Eles gritam a necessidade inadiável de uma mudança no sistema. Às vezes quero berrar, pois fica nítido que a estrutura social vigente machuca a todos nós. Mas será que alguém se importaria?

Quero dizer para as pessoas comerem menos carne, pois isso ajudaria a evitar uma possível nova pandemia. Quero dizer para pensarem no próximo e não solicitarem um auxílio emergencial sendo que já têm dinheiro no banco. Quero dizer que precisamos ser empáticos, porque o mundo melhora quando existe igualdade, não competição.

Mas eu aprendi também no isolamento a não carregar o mundo nas costas. Intensifiquei a Yoga, a meditação. Talvez o melhor seja manter a minha mente centrada, mandar luz, energia boa, vibrações de amor aqui de dentro. Parece bobo, mas é poderoso.

Esse tempo só meu tem sido a primavera da minha quarentena. Sei lá. Há dias internamente primaveris, outros invernais. Tudo bem.

Sou mulher. Quando começo a pensar demais, a escrita me salva. Ou aquela louça que tá me esperando lá na pia para ser lavada. Boto uma música, canto, limpo.

Sempre há algo a fazer. E li algo da Lispector esses dias que virou uma espécie de mantra:

“Uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive, muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente. Foi o apesar de que me deu uma angústia que insatisfeita foi a criadora de minha própria vida.”

Apesar de, precisamos continuar.




Yoga: meu caminho de busca por uma vida em paz

foto de uma vela acesa

Não me recordo exatamente quando foi que o Yoga me trouxe o insight que inspirou este texto. Mas sei que, naquele dia, algo na minha vida mudou radicalmente: ficou claro, bem diante dos meus olhos, um fato óbvio (que até então, de vez em quando, eu costumava ignorar): todos os seres humanos sofrem.

Todinhos, sem exceção. Eu, você que me lê. A blogueirinha que parece ter a vida perfeita no Instagram. O rico e o pobre. Qualquer pessoa no mundo já experimentou o sofrimento. Não por acaso, esta também é a primeira das nobres verdades expressas por Buda: a dor existe

Também não por acaso, tanto pela sabedoria indiana, quanto pelo budismo, está dito que existe um caminho para atenuar essa dor. Mas será mesmo que é possível ter uma vida em que os altos não são tão altos e os baixos não são tão baixos? Uma vida em que, independente do que aconteça externamente – mesmo que se trate de uma pandemia mundial -, seja possível manter um pouquinho da serenidade interior?

Jamais teria a pretensão de dizer que tenho a resposta para todas essas questões. Mas, neste artigo, quero compartilhar um pouquinho da minha jornada diante de tais perguntas.

A vida perfeita é sempre uma criação ilusória

Por mais louco que possa soar, compreender que todos sofremos foi libertador para mim. Até então, eu realmente achava que algumas pessoas eram simplesmente mais afortunadas que outras. Diante de uma “vida perfeita” nas redes sociais, acreditava que certos sortudos “ganhavam na loteria da vida”, enquanto outros estavam destinados a sofrer.

Só que, quando comecei a me aprofundar nos estudos de Yoga – não somente focando na parte física, mas também em seus ensinamentos enquanto escola filosófica – constatei algo óbvio, mas tão facilmente ignorável: o simples fato de todos termos um corpo já é pré-requisito para sofrermos.

Acompanhe o raciocínio. Corpo é matéria. Matéria envelhece, se degrada facilmente. Ou seja: em algum momento de nossa existência, na infância, juventude ou velhice, o simples fato de estarmos dentro de um corpo capaz de se deteriorar já vai nos fazer sofrer. Ocorre que adoramos ignorar isso e fingir que estamos imunes, não é?

Aí está o ponto-chave. A ignorância da verdade desse sofrimento é o que leva a maioria das pessoas a buscarem distrações por meio de coisas materiais e prazeres externos, entrando em um infinito ciclo de dor versus prazer, mas que não traz nenhum tipo de satisfação plena. O medo continua ali, pois quando se ignora o sofrimento, ele logo reaparece na outra esquina.

Já reparou como algumas pessoas têm extrema dificuldade em lidar com a quarentena? Não conseguem ficar em casa, sempre inventam algo para fazer? Precisam de uma distração constante? Não conseguem lidar com o silêncio? É porque o silêncio exige respostas mais profundas sobre a nossa existência.

E, sim: é necessário coragem para encará-las.

O corpo como porta de entrada para Yoga

Vamos agora continuar por partes, então: se o corpo é a primeira causa mais óbvia do sofrimento humano, faz sentido começar um caminho de cura por meio dele também, não é? É aí que entram as posturas físicas que você já deve ter visto por aí, chamadas de asanas.

Uma maravilhosa reportagem na hoje já extinta Revista Yoga Journal, escrita por Leslie Peters (que foi diretor executivo do Instituto Iyengar Yoga de Los Angeles de 1993 a 2004), esclarece detalhadamente o porquê da jornada de libertação proposta pela filosofia do Yoga começar com práticas físicas.

Acontece que o corpo é nossa parte mais externa, densa, palpável. Somos capazes de tocá-lo. Ele é nosso veículo para atingir uma consciência mais presente – esta que não vai se abalar tanto diante de mil acontecimentos externos que ocorrem em nosso dia.

“A firmeza do corpo vem antes, porque nós começamos nossa jornada pela periferia – o que podemos ver, sentir, tocar. O corpo é o veículo do caminho do Yogi na libertação máxima. A menos que ganhemos domínio do corpo, não podemos esperar prestar atenção à alma”, escreve.

Em outras palavras, não conseguimos aquietar nossa mente usando a mente. Não somos capazes de encontrar um espaço de quietude interna e tranquilidade “pensando que não queremos ficar ansiosos”. Só podemos mudar nosso estado mental através do corpo. Mais precisamente, pelo movimento e pela respiração.

O verdadeiro caminho é procurar a essência

Conforme escrevi em uma postagem no meu Instagram no último domingo, quando foi comemorado o Dia Internacional do Yoga, a verdade é que viver Yoga é, sim, sobre fazer posturas físicas para buscar um espaço de tranquilidade interna. Mas a busca não termina aí.

Yoga é algo para a vida toda. Meditar e praticar fisicamente é uma partezinha do que seus ensinamentos propõem. Até mesmo o estudo das escrituras faz parte dela. 

Aliás, uma das melhores decisões que tomei na quarentena foi iniciar um Curso sobre os Yoga Sutras de Patañjali, ministrado pela maravilhosa professora Maria Nazaré Cavalcanti.

Nele, já pude compreender ainda melhor que Yoga é, na verdade, uma das seis escolas de conhecimento dos Vedas. Eles são alguns dos textos mais antigos escritos pela humanidade, datados de cerca de 5.000 anos e originalmente colocados em sânscrito – um idioma muito característico por sua construção sofisticada -, de modo que cada estrutura de uma palavra abre margem para uma interpretação profunda de seu real valor.

Ou seja: Yoga diz respeito a uma apropriação de ensinamentos escritos, códigos de conduta (como dizer a verdade, não acumular demais, buscar o desapego, não roubar o que é do outro) e práticas físicas para a vida, visando essa libertação do sofrimento. Não se trata de uma religião moralista, mas de uma bússola norteadora.

Hoje, entendo que é preciso viver Yoga, não apenas praticar Yoga. É quando a gente realmente se apropria dos ensinamentos e mantém a constância de uma prática diária que a diferença começa a acontecer. Ela inicia pequenininha, mas vai se tornando cada vez mais transformadora à medida em que se amplia.

Por isso, se você tem experimentado muita ansiedade neste período de tantas incertezas, quero finalizar reforçando:

  • Por mais que pareça, você não está sozinho(a). Todos sofremos. Você nunca sofre sozinho(a).
  • Se você não tem nenhum conhecimento sobre Yoga para fazer práticas físicas agora, procure ao menos ler sobre o assunto. Veja perfis na internet, reportagens e materiais que transmitam ensinamentos válidos e lhe inspirem confiança.
  • A nossa mente oscila demais todos os dias. Buscar uma prática de Yoga, mesmo quando a quarentena acabar, com a ajuda de um professor ou professora, pode ser um caminho realmente capaz de transformar sua vida.

Namastê. 🙂




“Jeffrey Epstein: Poder e Perversão”, série documental da Netflix, quase me fez vomitar. Precisamos falar sobre cultura de estupro

Jeffrey Epstein e Donald Trump

O aviso antes da exibição de cada episódio era um prenúncio do que estava por vir:

“Esta série contém descrições explícitas de abuso sexual de menores, que podem incomodar alguns telespectadores”.

A nova série criminal da Netflix incomoda. “Incomodar”, na verdade, é um verbo que não faz jus às sensações que ela evoca. Eu descreveria a experiência de acompanhá-la mais como um soco no estômago. Entrou para a lista de coisas mais nojentas que já vi na vida.

De forma resumida, o documentário dividido em quatro episódios demonstra como o bilionário Jeffrey Epstein utilizou de seu dinheiro, de sua influência e de sua inteligência perversa para criar uma rede internacional de tráfico de meninas menores de idade. Só pelo trailer você já pode ter uma ideia:

O foco eram, claro, meninas frágeis. Que vinham de famílias com problemas, muitas não tinham condições financeiras, tampouco perspectiva de melhorarem de vida. Epstein se alimentava, triunfava diante de sua impotência – o que devia aumentar sua sensação de poder mentalmente doentia.

Era um predador que seduzia pelo dinheiro, lhes chamava para fazer “massagens”, que rapidamente se transformavam em outra coisa. Depois, como um astuto abusador costuma fazer, lhes prometia pagar seus estudos no exterior, ajudá-las a crescer na vida. Bancava o pai bonzinho e convencia as próprias vítimas a chamarem outras amigas para as tais massagens.

Assim, facilmente, montou um esquema de pirâmide sexual com menores.

Cultura de estupro e a proteção do mais forte: o homem hétero, rico e branco

A série é reveladora em inúmeros sentidos, aliás. Primeiro, ao expor mais uma vez diversos nomes associados a Epstein. Príncipe Andrew. Bill Clinton. Kevin Spacey. Woody Allen. Harvey Weinstein. Este último que, graças às vozes corajosas de mulheres que encabeçaram o movimento #MeToo, foi parar atrás das grades.

Isso sem falar no próprio Trump. Sim: cada vez mais, ao que tudo indica, o presidente norte-americano não é perigoso só por não ter escrúpulos. Trata-se de um pervertido sexual em potencial.

Segundo, por elucidar de forma clara toda a estrutura de poder por trás do sistema que nos oprime como mulheres. Quando se trata de um homem rico, com influência, de cor branca e bons contatos, até mesmo a justiça se calou (foi comprada para se calar, dito de outro modo) diante das mais sólidas evidências. O que só aumentou o número de vítimas.

Eles fazem o suborno de um juiz aqui, melhoram sua imagem na mídia com uma filantropia ali e a coisa toda vai se arrastando. O esquema de Epstein revela o que há de mais podre no sistema capitalista: a possibilidade do dinheiro e da influência serem utilizados para silenciar e intimidar as sobreviventes. Não permitir que sejam ouvidas.

Ainda pior: culpabilizá-las. Algumas das que ousaram falar, conforme a série demonstra, foram automaticamente denominadas pela mídia como “prostitutas” ou “ex-prostitutas”. Eram menores de idade quando os abusos aconteceram. Eram vítimas. Ví-ti-mas.

Esta é justamente a essência da cultura do estupro: não só permitir que abusos aconteçam, como também culpabilizar a oprimida e, assim, viabilizar a continuação da violência. É perverso.

Sinto que nós ainda precisamos reforçar muitas vezes que um abuso mental ou físico contra a mulher nunca é culpa dela. Se você já ouviu comentários desnecessários sobre seu corpo, ou foi violentada por conta do uso de termos pejorativos que minaram sua autoestima, ou mesmo se já foi efetivamente estuprada, lembre-se de que isso não foi causado por você.

Não é sobre a roupa que você estava usando, nem sobre algo que você possa ter dito. A doença está na mente do predador.

Está na hora do nosso #MeToo

Enquanto mulher, me contorci na cadeira, suei frio e senti minhas entranhas apertarem a cada novo relato que a série trazia de uma mulher violentada. É uma experiência extremamente intensa ver tantas sobreviventes se pronunciando, chorando, relatando episódios semelhantes de abusos físicos e psicológicos. Uma após a outra.

Não vou entregar o spoiler de como ela termina, mas há um mínimo senso de justiça, pelo menos – embora incompleto. O fato é que a força e a cobertura do movimento que começou nas redes, o #MeToo, por meio do qual milhares de mulheres relataram ter sido violentadas e abusadas, garantiu a oportunidade das vítimas de Epstein se pronunciarem diante de um juiz que as ouviu. E colocou, finalmente, o pervertido atrás das grades.

Ainda assim, a verdadeira justiça não foi feita. Ao acompanhar o último episódio da série, você vai entender o porquê.

Mas e quanto às pequenas violências e estupros diários as mulheres ainda sofrem? E como fazer uma leitura disso aqui no Brasil?

Aproveito para recordar alguns dados estatísticos:

  • Segundo dados da Agência Brasil, só em São Paulo o número de casos de violência contra a mulher aumentou 44.9% durante a pandemia. Imagine com o número de casos não reportados.
  • Dados do Ministério da Saúde apontam que a cada quatro minutos uma mulher é agredida por um homem no Brasil. Um dos maiores índices de violência do mundo.

A opressão não está apenas na violência física e psicológica. Está em todos os setores da sociedade machista em que estamos inseridas. 

Ver as vítimas se pronunciarem no documentário da Netflix foi uma experiência tão difícil, quanto empoderadora para mim. Ficou ainda mais claro: nossa força enquanto minoria é coletiva.

Mulheres, nós, aqui no Brasil, também precisamos começar a falar.

Está na hora do “nosso” Me Too.

Ps: não costumo fazer uma chamada no fim dos meus artigos pedindo para que o leitor compartilhe meu texto. Mas, se você sentir que ler o que escrevi pode ser transformador para uma mulher, por favor, compartilhe. Obrigada.

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Memórias póstumas de um ano nômade

imagem de uma janela de avião

Eu adorava sentar na janela. Colocar os fones de ouvido, minha música favorita do momento e ficar ali quietinha. Só esperando o ônibus ou avião começar a andar, até que as paisagens se transformassem em traços coloridos ou nuvens. Se diluíssem, como a antiga versão de mim que ficava para trás a cada nova viagem.

Pensava comigo mesma que a vida, enfim, se transformara em uma versão do monólogo que a Lana Del Rey – assumidamente uma das minhas letristas contemporâneas favoritas – profere no clipe que antecede a canção Ride.

“Quando as pessoas que eu conhecia descobriram o jeito que eu estava vivendo, elas me perguntaram ‘por quê’? Mas não há sentido em falar com pessoas que têm um lar. Elas não têm ideia do que é buscar a segurança em outras pessoas e o seu lar ser onde você encosta a sua cabeça. (…) Eu não pertencia a ninguém e pertencia a todos. Não tinha nada e queria tudo, com um desejo por cada experiência e uma obsessão por liberdade que me levaram à uma loucura nômade que me deixava deslumbrada e aterrorizada. (…) E, se eu dissesse que não havia planejado para ser assim, estaria mentindo”.

Não sei se eu mesma seria capaz de descrever tão bem o que se passava dentro de mim. No ano de 2019, eu simplesmente precisava vagar. Havia me planejado para isso. Ainda assim, assumir esse lugar não foi simples. Se você é homem, sinceramente, provavelmente nem vai entender o que vou dizer agora.

É que, para uma mulher, entrar em um avião sozinha, rumo muitas vezes ao desconhecido – principalmente no Brasil – é um misto de sentimentos. Por um lado, sensação de independência e orgulho pela realização do sonho construído. Por outro, o medo gritante da exposição e da violência. Um país machista é perigoso, afinal.

Acontece que existe essa partezinha de mim que gosta de flertar com o perigo. Onde moro hoje, na verdade, ninguém gosta dele. Há um certo vício por estabilidade, uma necessidade de fugir do medo. O que, paradoxalmente, parece só gerar ainda mais medo.

Os muros estão cada vez mais altos. Há câmeras por todos os lados. E olha que estou falando de uma cidade pacata.

Talvez por isso eu não me encaixe tão bem. São vidas estruturadas demais, quadradas demais, presas demais. Acabam ficando tão entediados diante da própria existência que começam a comentar a dos vizinhos.

Sei lá. Acho um desperdício tão grande de vida. Cada vez mais tenho dificuldade em compreender esses comportamentos ortodoxos demais. Só que foi justamente a estrada que me fez ter mais clareza sobre tudo isso. Antes, eu era parte da bolha. Hoje, vivo nela, porém desprendida. Ainda que signifique, muitas vezes, estar só.

Meu ano nômade causou esse senso de não pertencimento em mim, mas não me arrependo. Ele dividiu meu coração em pedacinhos e lhes deixou espalhados por diferentes partes do mundo. O nomadismo me fez relembrar o que é a essência do amor.

Me fez recordar que é possível amar pessoas mesmo sabendo pouco sobre elas e que o mundo é cheio de seres humanos incríveis com ideais similares aos meus. Nós já não queremos mais tanto dinheiro ou posses. 

Queremos nos embebedar da vida. Já não temos tanto medo de ganhar ou perder. Nossa ambição maior é transformar nossa existência em arte. Deixar algum tipo de legado.

Nesta terça-feira gelada, reflito sobre tudo isso. O Coronavírus acabou com o nomadismo, pelo menos por enquanto. Por estar bastante ligada à comunidade de nômades por aí, sei que nossas almas ansiosas por desbravar o mundo estão sofrendo bastante com isso.

Ainda assim, restam as memórias de tudo o que vivi. Gosto de olhar para trás com esse sentimento de que tudo valeu a pena. Hoje, percebo com mais clareza que o nomadismo me trouxe também outro aprendizado importante no decorrer do caminho: às vezes, ficar requer mais coragem do que partir

O mundo é gigante e usá-lo como refúgio de si mesmo nem sempre funciona. Estar em quarentena no Brasil, na Europa, na Ásia ou qualquer outro lugar não nos permite fugir. Agora, chegou o momento de começar outro tipo de viagem. 

Não há saída: a maior aventura será para dentro da gente.

Por aqui, essa viagem tem sido intensa.

*A tradução foi minha mesmo e adaptada ao contexto do texto.